“Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por vós mesmas e por vossos filhos! (Lc 23,28)
No Evangelho de Lucas, essas estão entre as últimas palavras do Senhor no percurso do Calvário. Mais um beliscãozinho de Jesus que, até o fim, nos dá o exemplo de que é preciso enxergar o próximo e suas aflições – ainda quando também nós experienciamos o sofrimento.
Com a carne aberta em chagas, esgotado física e emocionalmente, Cristo não se furta de acalentar o coração daquelas que acompanhavam uma das mais trágicas cenas de brutalidade e humilhação destinada a um inocente.
É neste caminho da Via Crucis que, entre as tantas mães as quais se dirige Jesus, nós católicos destacamos, com a Procissão do Encontro, a figura materna de Maria, Senhora das Dores.
Um roteiro para manter viva a tradição
Não há relatos em nenhum dos evangelhos sobre esse encontro de Maria com Jesus no caminho do Calvário. Mas João (19,25) afirma que “perto da cruz de Jesus, permanecia de pé sua mãe…”
A partir de uma piedosa tradição popular, nos tornamos partícipes desse momento celebrado a cada Semana Santa. Em Itabira, são três dias para a culminância.
Na segunda-feira, 03/04, após a Santa Missa, a procissão com a imagem do Senhor dos Passos saiu da Catedral Diocesana e o depósito aconteceu na Igreja de São Geraldo, no bairro Major Lage de Baixo.
Na terça-feira, dia 04/04, a imagem de Nossa Senhora das Dores, seguida por uma centena de fiéis em procissão, saiu da Matriz Nossa Senhora da Saúde, depois da Santa Missa presidida pelo Padre Paulo Marcony, para a Igreja Nossa Senhora de Fátima, na Vila Amélia.
O Encontro
Há sempre alguma coisa em dias celebrativos, indiferente se festivos, introspectivos ou reflexivos, que parecem propositalmente preparados pelo próprio Deus – seja para nos arrancar da inércia, seja para nos afagar.
Dos afagos, fico com a lua. Escandalosa!
Para nos sacudir, dois momentos únicos interligados pelos dedinhos precisos do Espírito Santo. A saber: uma homilia e um sermão!
Homilia
A homilia foi do Padre Renato Menezes que, a convite do Padre Paulo Marcony, concelebrou a Santa Missa na Igreja Nossa Senhora de Fátima, antes da procissão.
O que talvez mais tenha me impressionado foi o fato de que neste mesmo dia, num momento de fuga do trabalho, abri a bíblia para ler e refletir sobre algumas passagens do Evangelho de João. E eis que me detive exatamente neste versículo: “perto da cruz de Jesus, permanecia de pé sua mãe…” (Jo 19,25) – já citado, inclusive, acima.
Abraçou-me uma dor intensa ao visualizar Maria ali, diante de Jesus nu, ensanguentado, tentando assimilar tal imagem com a do seu filhinho correndo pelos cantos da casa simples, ou gargalhando diante de alguma brincadeira de José.
Senti um vigor imenso invadindo meu coração, que anda um tanto despedaçado pela saudade que tenho sentido da minha filha – não a vejo há mais de um mês. De repente, toda essa minha saudade pareceu irracional, pequena, vexatória até. Posso dar graças a Deus porque ela está bem. Ainda que longe de mim, o Senhor a tem guardado com mãos firmes.
Se imaginar Maria me abrandou a saudade também disparou outra dor: a de saber uma mãe que sofre. E um questionamento: como ela conseguiu permanecer de pé?
É claro que nenhum de nós imagina Maria dando “chiliques”, esbravejando. Mas se sentir perturbar até a alma sem que isso nos jogue ao chão, de joelhos… aí é outra história.
Saí das minhas reflexões pessoais incomodada com a falta de resposta, mas sabendo que voltaria ao versículo na primeira oportunidade.
Não precisarei retomar essa questão. Padre Renato, tão bem, a respondeu: “Maria não se deixou abater, foi uma rocha de firmeza. Naquele oceano de dor, na noite escura da sua alma havia a esperança: Ele ressuscitaria. Maria aceita o sacrifício da cruz para a redenção da humanidade.”
Diante da traição de Judas, da negação de Pedro, da debandada de todos os apóstolos na noite escura de Jesus na terra, Maria foi aquela que nunca deixou de acreditar que Aquele seu Filho era realmente o Messias e que como havia sido profetizado: Ele ressuscitaria ao terceiro dia.
(Nunca seremos capazes de compreender minimamente a espada que atravessou Maria. Mas é impossível não reconhecer a dignidade desta Mãe, feita também nossa Mãe pelo Cristo.)
Sermão
Quer outro tranco? Este veio na homilética do Padre Ueliton Neves. Poucas vezes ouvi tantas palavras das quais posso afirmar: nenhuma delas se perdeu!
Tradicionalmente, após o encontro das duas imagens/procissões – do Senhor dos Passos com Nossa Senhora das Dores -, acontece o “Sermão”. Este ano, na Av. Mauro Ribeiro, próximo ao Santuário São Geraldo Majela.
Seria impossível adentrar em todos os detalhes do sermão – que merecia, diga-se, ser publicado na íntegra.
Abaixo, antes de fazer meu próprio recorte, seguem alguns trechos proferidos por Padre Ueliton.
– Muitas mães fazem a experiência do Calvário neste dia. Assim como Maria, também essas mães choram. – em referência a tragédia que aconteceu eu uma creche de Blumenau (SC), resultando na morte de 4 crianças
– A vocação da Igreja é seguir a ordem de Jesus: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer!’ (Mt 14,16) – em referência à Campanha da Fraternidade deste ano.
– Deus se identifica com os que sofrem, passam fome, estavam nus. No final, o que será levado em conta não são as nossas práticas religiosas, mas a nossa atitude diante do próximo, do sofrimento injusto dos últimos da terra: os excluídos. O critério para entrar nos céus não é o que fizemos ou deixamos de fazer para Deus, mas o que fizemos ou deixamos de fazer para nossos irmãos e irmãs. Esta é a verdadeira religião!
– A imagem de Deus mais surpreendente encontrada nos Evangelhos é que Ele se fundiu com o humano. Deus se funde e se confunde com todo ser humano.
– Maria é essa mulher que esmaga a cabeça da serpente. É bendita entre todas as mulheres.
E, agora, sigo com o meu recorte sobre Simão, o Cirineu, também lembrado no sermão.
Ao ouvir a palavra “Cirineu”, fui arrancada daquele lugar extasiado – de quem é tão espectador quanto qualquer fiel e devoto que participa dO Encontro -, para relembrar meu próprio caminho quaresmal deste ano.
Em um dos momentos mais reflexivos e emotivos desta caminhada, ouvi a seguinte frase: “às vezes tudo que podemos ser para o outro é um Simão de Cirene”. O fato de tê-la ouvido de uma pessoa pela qual tenho profundo respeito e considero de grande sabedoria me deixou mais aflita do que aliviada pela situação em que foi proferida.
Ser Simão de Cirene é, como disse Padre Ueliton, “colaborar com Cristo no plano da salvação”. É de uma responsabilidade gigantesca.
Homilia e Sermão se deram as mãos, tal como Mãe e Filho devem fazer hoje lá no mais alto dos céus.
Toda Semana Santa, quando interiormente buscamos realmente experienciar em nosso coração os últimos passos do Deus feito Homem, algo de muito profundo brota e, com graça, permanece como lição para os dias vindouros.
Estas duas lições, Maria de pé diante da cruz e Simão carregando a cruz com Jesus, são meus aprendizados. Ainda há tempo, até o domingo da Páscoa, para outros…
Outros olhares
“O que mais me chamou a atenção foi eles falarem das mães que perdem seus filhos.”
A frase é da pré-adolescente Júlia Lage Rodrigues Alves, 11 anos, que participou pela primeira vez, junto com a prima Luiza Lage Rodrigues Alves, de 6 anos, da procissão. As duas acompanharam a avó ‘Nem’ Jácome e a tia Thaís Lage Jácome.
Júlia esteve, com outras dezenas de fiéis, na procissão de Nossa Senhora das Dores. Durante o percurso, os fiéis são motivados à reflexão e oração e foi num desses momentos que a “menina” se sentiu tocada pelo sofrimento de quem perde um filho.
É isso, e um tanto mais, que a Semana Santa desperta em cada um de nós.
Na Procissão do Encontro, revivemos momentos da Paixão, refletindo sobre as dores de Maria e a agonia de seu Filho; atualizando sempre esse sofrimento com as dores vivenciadas hoje pela humanidade.
“O sofrimento de Maria é o que estamos vivendo hoje, na figura dessas mães que perderam seus filhos na escola, onde deveriam estar seguras. Nas mães que convivem com a dura realidade da fome e das enfermidades de seus filhos” – relata Nem Jácome que há 40 anos acompanha a Procissão do Encontro
Um pouco dessa história de encontros
A verdade é que, por mais que se pesquise nesta terra sem lei da internet, não há fontes confiáveis suficientes para afirmarmos quando e onde surgiu a tradição de celebrar a Procissão do Encontro. (Confesso que eu brigaria com as contas por um ano de folga só para fuçar os livros de tombos das primeiras paróquias no Brasil).
Embora seja possível encontrar entre os resultados das pesquisas na internet até notas que dizem que nas “américas” ela teria chegado primeiro ao México e depois se espalhado por outros países, inclusive o Brasil; dado o fato de em Portugal tal procissão também ser celebrada, talvez tenham sido os mesmos portugueses que nos “colonizaram” a nos apresentar essa tradição.
Nas Minas Gerais, a Procissão do Encontro é parte da programação da Semana Santa em muitas cidades! E em Itabira não é diferente.
Podemos afirmar, a partir de registros em livros de tombo da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, que há pelo menos 100 anos os fiéis realizam essa procissão pelas ruas de Itabira.
“Celebramos a Semana Santa como de costume e as festas próprias da Quaresma, com uma diferença na Procissão do Encontro que se deu junto ao Adro da Matriz, em vez de ser como outrora no largo antigo entre as ruas Benjamim Constant, Tiradentes e Guarda-Mor Custódio. A imagem de Nosso Senhor dos Passos veio pelas ruas centrais, saindo da Igreja da Saúde, acompanhada pelos homens e Nossa Senhora das Dores pela rua da Saúde e Avenida Martins da Costa, acompanhada por senhoras e meninas vestidas de branco” – registro feito pelo padre Sudário Maria Moreira Mendes, em 1929. Padre Sudário assumiu a paróquia em 1925. No entanto, tanto a Matriz do Rosário (atual Catedral Diocesana) quanto a Igreja Nossa Senhora da Saúde (hoje Matriz) datam, respectivamente, de 1770 e 1848 (ano de conclusão das obras).
Obviamente, de lá pra cá muita coisa mudou. Não dividimos mais os fiéis por gênero. Homens e mulheres seguem as duas procissões. O local do encontro também é outro, o que mais do que se justifica em função da quantidade de paróquias que temos no município: de uma, na época de Padre Sudário, para sete nos dias de hoje.
“Era uma multidão vinda de todos os cantos da cidade. Todo mundo participava. As pessoas choravam, emocionadas. Homens e mulheres que acompanhavam separadamente as procissões do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores se encontravam no paredão da Rua Tiradentes. Ali, Padre Zé Lopão fazia o sermão” – relembra Rita Gregório Soares, 79 anos e que, desde a infância, participa junto com a família das celebrações da Semana Santa em Itabira.
O título: “a ousadia da fé”
Haveria outras várias possibilidades de um título melhor para o leitor que não participou das procissões e nem presenciou O Encontro.
Mas como o título não comporta as dezenas de sensações, impressões e imagens que saltam aos olhos em momentos como esse (nem o texto é capaz disso), ter fé no mundo de hoje é sim uma ousadia.
Maria ousou ficar de pé aos pés da cruz porque não abandonou sua fé nas promessas de Deus. Pedro reconheceu sua fé ao retornar a Jesus depois de negá-lo por três vezes. A exceção de Judas Iscariotes, todos os apóstolos retomaram seu caminho acolhendo o plano de Jesus para a salvação.
A fé é boa parte do que nos move. A perseverança é o que nos faz avaliar os erros e retomar o caminho certo. E a caridade… esta é o que nos faz olhar para a cruz e entender porque o amor tudo pode.
Que venha, então, a ressurreição!
Liliene Dante