A voz de Cristo moribundo
Faltavam apenas alguns minutos para que Cristo, no alto da Cruz, entregasse a sua alma ao Pai. Seu olhar inclinou-se para baixo e buscou primeiro os olhos de sua Mãe; depois, desviou-se para João, o discípulo amado. Os seus lábios esforçaram-se então por articular umas poucas palavras. Estava exausto, agonizante, mas queria falar. A sua voz enfraquecida esforçava-se por dizer exatamente o que Ele, o Filho de Deus, queria dizer naquele momento em que se consumava a Redenção dos homens.
Vendo Jesus a sua Mãe e junto dela o discípulo que ele amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí a tua Mãe. E, desta hora em diante, o discípulo a levou para sua casa (Jo 19, 26-27).
É da maior importância perceber o que Cristo, nessa hora, realmente quis afirmar. O seu pensamento humano tinha toda a lucidez do pensamento divino; e, por sua vez, essas derradeiras palavras, à beira da morte, expressavam uma mensagem precisa, que devia ficar gravada sem equívocos, pois estava manifestando a sua “última vontade”. Qual foi, portanto, o sentido dessa dupla afirmação: “Eis a tua Mãe” e “eis o teu filho”?
O que Jesus “não” disse
Para compreendê-lo com exatidão, é conveniente que pensemos primeiro naquilo que Jesus não disse. Poderia, por exemplo, ter pedido a João: “Cuida da minha Mãe, toma conta dela”. Mas não o disse, e seria pouco explicável que pensasse nisso – no cuidado material da Mãe –, tendo em conta que Maria, conforme sabemos pelo Evangelho, tinha perto dela parentes próximos, que eventualmente a podiam atender, e nos consta que em parte já o estavam fazendo (cf. Mc 3, 31).
Também não teria sido lógico que, com as palavras “Eis aí o teu filho”, quisesse colocar o discípulo sob o amparo de uma nova mãe adotiva, Maria. No entanto, é bem conhecido, pelo Evangelho, que o discípulo amado tinha a mãe viva, Salomé, que ela era uma das santas mulheres que seguiam fielmente Jesus (cf. Mc 15, 40-41), e que, além disso, zelava maternalmente, até exageradamente, pelos seus filhos Tiago e João, ao ponto de ter pedido a Cristo que lhes concedesse os primeiros lugares no seu Reino (cf. Mt 20, 20 e ss).
Fica excluído, por isso, que na sua última hora Jesus tenha pretendido resolver problemas relativos ao futuro da Mãe ou do discípulo. Resta então uma só hipótese, a que se depreende literalmente das palavras de Jesus, tal como João – que escreve no Evangelho as suas recordações vividas – as compreendeu.
João era, na agonia de Jesus, o único discípulo que se encontrava ao pé da Cruz. E é precisamente com essa palavra – “discípulo” – que se designa a si mesmo. Entende que a sua condição de discípulo de Jesus vale mais do que o seu nome e a sua ascendência. Naquele momento ele era acima de tudo “o discípulo”, aquele que encarnava e, por assim dizer, representava todos os discípulos, mais ainda, todos os homens resgatados na Cruz pelo divino Mestre e chamados a serem seus discípulos.
O que Jesus quis dizer
Sendo assim, a intenção de Cristo torna-se transparente. Está proclamando uma nova e sobrenatural maternidade – atribuída por Deus a Maria – sobre todos os chamados a ser discípulos do Redentor. É a clara expressão da vontade de Deus, que confere a Maria – dentro dos planos da Salvação – uma maternidade de ordem espiritual sobre todos os homens e, especialmente, sobre aqueles que, por serem “discípulos”, têm em Jesus, o Filho de Maria, o Primogênito entre muitos irmãos (Rm 8, 29).
Toda a vinculação da alma cristã com Maria passa a ser, assim, uma relação filial: «Eis a tua Mãe». Ora, a filiação – como a maternidade – é um vínculo real e também, inseparavelmente, um sentimento; e o sentimento, mais do que a razão, atinge o coração, aquelas fibras secretas e íntimas da afetividade que a razão só muito a custo consegue penetrar.
Tendo a devoção a Maria – o amor filial a Maria – raízes fundas e próprias no coração dos cristãos, é natural que extravase com frequência naqueles modos e «razões do coração» que – como dizia Pascal – «a razão não conhece». E é também explicável que esse amor filial, ao desabrochar ao ritmo pouco esquematizado do afeto, se expresse em transbordamentos cordiais e detalhes espontâneos, que façam estremecer os moldes mentais um tanto geométricos do pensamento racionalista. Seria muito difícil chegar a ter autêntico acesso a uma mãe pelo caminho do raciocínio filosófico ou da lógica fria.
Sem dúvida é por isso – melhor dizendo, por não ter compreendido isso – que alguns se escandalizam com o que julgam “exageros” católicos da devoção a Maria. Quem é que não conta no seu histórico com a lembrança de uma conversa – talvez de uma discussão – com um amigo protestante de boa fé, que recriminava à Igreja Católica os “absurdos” da devoção a Maria? – “Vocês, os católicos, fazem da devoção a Nossa Senhora uma idolatria; será que não percebem que esse culto a Maria chega a ser uma verdadeira superstição? Até parece que colocam Maria num plano de igualdade ou mesmo acima de Cristo, esquecendo-se de que só Ele é o Salvador, o único Mediador entre Deus e os homens…”
Vez por outra, todos já tentamos esclarecer invectivas deste tipo. Na realidade, a única coisa que essas censuras pretendem afirmar é que a Igreja Católica, com a devoção a Maria – santuários, rezas, velas, procissões, imagens em todas as igrejas, nos lares, etc. – se teria afastado da pureza do Evangelho, introduzindo no cristianismo uma excrescência espúria, ou no mínimo um exagero supersticioso, que toldaria, se não desvirtuaria, a autenticidade evangélica da fé cristã.
É possível que, ao surgirem essas questões, nos tenhamos esforçado por aduzir as nossas razões em favor da devoção a Maria. Se eram apenas razões pessoais, mal fundamentadas, pouco peso podiam ter. Na realidade, o que afinal importa não é o que nós, católicos ou protestantes, possamos pensar ou dizer particularmente a respeito da Mãe de Jesus. O que é absolutamente decisivo é o que Deus pensa e diz de Maria. Estas meditações que agora começamos pretendem ser, sobretudo, uma escuta atenta e serena precisamente disso: Que nos diz Deus sobre Maria? O que é que Ele afirma sobre o papel de Maria na salvação dos homens?
Uma vez colocado assim o problema, é natural que se levante uma pergunta: Como é que nós podemos sabê-lo? Se Deus não tivesse falado, certamente não o poderíamos. Acontece, porém, que Deus falou. Se há um ponto de absoluta coincidência entre todos os cristãos, católicos ou não, é que a Bíblia contém a palavra de Deus, e que essa palavra se tornou plena na Palavra – no Verbo – que se fez carne, isto é, em Jesus Cristo e no seu Evangelho. É nele, portanto, que deve ser buscada e achada a resposta, antes de mais nada. Ë o que procuraremos fazer nas próximas meditações.
Adaptação de um trecho do livro de F.Faus Maria, Mãe de Jesus (Quadrante 1987)