Em mais de 20 anos como jornalista profissional, nunca tive a oportunidade de fazer uma matéria sobre o Transtorno do Espectro Autista. De repente, na plenitude do isolamento social, eis que ela surgiu.
Poderia ter sido uma experiência rotineira na vida de qualquer jornalista acostumado a cobrir de tudo um pouco. Mas nenhuma de minhas experiências profissionais, principalmente as relacionadas ao campo da medicina, foi similar. Cada uma delas me impactou de forma diversa e me transformou de alguma maneira.
Quando vi Luísa no aqui e ali, no embaixo da mesinha, no pega isso ou aquilo, mãozinhas agitadas procurando um brinquedo diferente, lembrei-me de minha própria filha: uma criança ligada na tomada de 220.
Havia lido, obviamente, muitas coisas sobre o TEA, me preparando para a entrevista. Saí de casa com um amontoado de informações e só não tive uma imagem fixa do que iria encontrar porque havia publicado algumas fotos de Luísa e Laura no facebook da Paróquia Nossa Senhora da Saúde – as duas coroando Nossa Senhora.
Estávamos postando vídeos das crianças da catequese, homenageando Maria durante o isolamento social, quando a Rosângela Perucci, membro da Pastoral da Comunicação (Pascom), me falou que o vídeo com as sobrinhas “não tinha ficado muito bom porque a Luísa gritou muito – era o jeito dela se manifestar”. Assim, descobri que a Luísa fazia parte daqueles 2 milhões de brasileiros citados na primeira e segunda reportagens publicadas. As irmãs, Rejane e Rosângela residem na Vila São Joaquim, são membros da Comunidade Nossa Senhora de Fátima.
Muitas pessoas poderiam se perguntar: por que estamos lendo isso num site da Igreja, da nossa Paróquia? Simples, eu responderia: porque somos cristãos e a inclusão é parte da nossa caminhada. Mas uma inclusão séria e responsável – realmente atenta a este espírito cristão do acolhimento e da aceitação das diferenças, em todas as esferas e peculiaridades, como nos propõe e pede insistentemente o Papa Francisco. Na catequese da Comunidade Nossa Senhora da Saúde, há um catequizando que, assim como Luísa, foi diagnosticado como autista. É lindo ver essas crianças inseridas nos mais diversos contextos e ambientes.
Ao produzir esta série sobre o TEA, visualizei várias cenas de Luísa em diversas situações relatadas pela mãe Rejane e pela estagiária Aninha:
– “Ela separava tudo por cores e tamanho.”
– “Ela não brincava, não interagia com as outras crianças, não compartilhava, não pedia.”
– “Quando queria alguma coisa, algum brinquedo, simplesmente pegava, às vezes batia. Gritava, mas não conseguia dizer o que queria, nem com a fala, nem indicar com a mão.”
– “Não respondia aos chamados.”
– “Ela andava na ponta dos pés.”
Criei uma imagem de Luísa na pontinha dos pés e, de cá, dos meus pensamentos, ela não sai: Luísa rodopiando, com saia e meia-calça de bailarinas, os cabelos cacheados enroladinhos num coque perfeito e aquele girar de quem está vivendo o momento num mundo só seu.
E o sorriso? Ah, o sorriso de Luísa foi daquelas expressões desconcertantes. A dificuldade de interação social é uma das coisas pontuais que li sobre o TEA. Luísa não apenas sorriu como me abraçou uma das pernas. Ela estava “escondida” debaixo da mesinha enquanto eu conversava com a mãe. Assim, do nada, me envolveu nesse abraço apertado. Grande foi a surpresa – porque, de certa maneira, saí de casa pensando que ia encontrar uma criança “na dela”, sem muita “paciência” para os adultos ou suas prosas sem graça.
Rejane me explicou que, ao contrário de muitas outras pessoas com o transtorno, Luísa responde bem ao contato físico, gosta e se sente segura. Chegou a comentar, também, que no inverno, entrar “debaixo da coberta com ela” acalma a criança.
Coisinhas que para qualquer um de nós parecem simples, como a mudança de uniforme na escola, ou a troca de sala e professor de um ano para o outro – podem desestruturar Luísa, promover uma “desorganização interna”. Como mãe, isso bateu no fundo de minhas próprias estruturas. Imagine que ao entrar e sair de cada ano letivo, o nosso filho tivesse que se deparar com “angústias” como essas e precisasse se reestruturar internamente de novo para continuar seguindo.
É assim que funciona com Luísa em várias situações. Por isso é tão importante tentar manter uma “rotina”, de maneira que se possa “prever” a maior parte dos acontecimentos que se processam nas 24h. Em meio ao caos e correria do mundo e, agora, com o agravante da pandemia, é grande a energia para tentar manter as coisas “em ordem”. Lembrando que os pais de Luísa ainda têm Laura que, com apenas 6 anos, nem sempre é capaz de entender algumas reações da irmã e o porquê de algumas coisas terem que ser diferentes para ela.
Como o entorno reage diante de pessoas com características tão atípicas?
Depende.
Quando se trata do universo infantil, parece que até os “céus” conspiram para que a sabedoria divina se faça como discernimento e aprendizado interno nas crianças.
Com certeza, há certa estranheza. Lembro-me de dois episódios envolvendo minha própria filha na escolinha. Num deles, ela não entendia porque a coleguinha (com Síndrome de Down) não parava de puxar o cabelo dos outros nem quando a professora falava que não podia. Num outro, ela e a turma passaram um ano dividindo a sala e as atividades com uma criança que tinha o desenvolvimento motor comprometido. Certo dia, no caminho de volta pra casa, ela falou algo do tipo: “mamãe, hoje fui eu quem ficou cuidando de brincar com o “….” no tanquinho de areia”. Nunca me esqueci da expressão de alegria e responsabilidade naquele rostinho de uns 3, 4 anos.
(Abro este parágrafo para dizer das grandes e eternizadas alegrias que Deus nos proporciona ao longo da vida. No ano seguinte, no primeiro dia de aula, enquanto caminhava com minha filha para o portão da escolinha, percebi um “menino”, caminhando cambaleante, de mãos dadas com a tia/mãe. Fixei os olhos, era o coleguinha do “tanquinho de areia”. Minha filha também viu e saiu correndo. Num abraço, quase derrubou o menino. Voltei pra casa muito grata: por ele caminhar e por eu ter tido o privilégio de presenciar tão grande conquista).
Apesar da estranheza – as diferenças chamam, sim, a atenção -, a maneira como as crianças se relacionam com o diverso é muito diferente da maneira como nós, adultos, nos relacionamos. Para ilustrar, Aninha relata um fato dentro de sala de aula – ela também é quem acompanha Luísa no Colégio Nossa Senhora das Dores. No primeiro dia de aula de uma aluna novata, a criança escolheu sentar exatamente na cadeira de Luísa (que tem a cor diferente – trazida da sala de aula do ano anterior, para facilitar o processo de readaptação). Mais do que depressa, veio um outro aluno avisar: “nessa cadeira não pode porque ela é só da Luísa”.
As crianças entendem, se adaptam, ajudam, contribuem para o desenvolvimento de Luísa. Assim como Luísa, já carregada de um dom inato, ensina-os a tolerância, a compreensão das diferenças, a necessidade de acolhimento. Nem sempre é preciso falar para se fazer entender.
Quem dera… tivéssemos chegado à vida adulta com a mesma capacidade de compreensão que tínhamos na infância. Não apenas nós seríamos melhores – mas todo o mundo!
Agradeço ao casal Rejane e Adriano pela graça de poder levar na alma esse aprendizado de amor e perseverança, de exemplo de pais compromissados e dedicados. Com certeza, vai servir para a minha própria caminhada de mãe.
Por Laura, meu coração saiu palpitante com as “mágicas” que ela fez pra mim, com o carinho e acolhimento que ela tem com a irmã. De Luísa, vou pregar essa tela/aquarela de bailarina, sempre na pontinha dos pés, numa das paredes mais bonitas do meu coração.
(Porque esse tipo de ternura… cura!)
Atendimento na rede pública de ensino em Itabira
Na segunda reportagem falamos sobre o atendimento aos autistas realizado através da rede pública de saúde. Não poderíamos deixar de citar que o direito à educação também deve ser assegurado às crianças/adolescentes com Transtorno do Espectro Autista.
Em Itabira, 74 pessoas estão matriculadas nas escolas públicas municipais, cursando o ensino fundamental – que é de responsabilidade dos municípios (o ensino médio é assumido pelos estados).
A Secretaria Municipal de Educação conta com o Centro Municipal de Apoio Educacional (CEMAE) responsável pela coordenação dos serviços de Educação Especial e Inclusiva na rede municipal de ensino. É o CEMAE que dá suporte às escolas no processo de inclusão de alunos, atuando dentro do espaço escolar junto os estudantes, familiares e profissionais da educação.
As escolas municipais, além do professor regular, mantêm em sala de aula um profissional que faz o acompanhamento individual dessas crianças/adolescentes – assim como Luísa é acompanhada no Colégio Nossa Senhora das Dores.
Esses profissionais da rede pública recebem cursos de capacitação para se adequarem às necessidades dos estudantes. Além de acompanharem em sala a criança, dão o suporte também fora de sala, em situações de estresse. Daí a importância de se estabelecer um “vínculo” para além da responsabilidade de trabalho, algo próximo à afetividade e acolhimento no qual a criança possa buscar e encontrar apoio em diversos momentos da rotina diária no ambiente escolar.
Os estudantes com necessidades especiais são matriculados nas escolas da rede pública conforme o critério de zoneamento – normalmente, residem em bairros próximos às instalações educacionais. Entre as que possuem hoje crianças/adolescentes com TEA estão a Escola Municipal Didi Andrade e Escola Municipal Nico Andrade.
No Brasil, dados do censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que, em 2018, mais de 105 mil alunos com TEA estudavam em escolas tradicionais, com alunos sem necessidades especiais – os números compreendem estudantes das redes pública e privada.
Passos lentos
O caminhar da inclusão é um processo lento. Mais do que “estruturas acolhedoras e adaptadas” é preciso uma mudança interna, um reaprender a olhar as diferenças sem preconceito, atentar para o fato de que as potencialidades e habilidades estão em todos nós e são peculiares. Não nascemos prontos e triste seria se chegássemos ao ponto de nos sentirmos “acabados”, como se nada mais houvesse para mudar e aprender.
A história de Luísa me ensinou muito, foi uma lufada de ar em meio à pandemia. Um ensinamento que transcende essa prática óbvia e estigmatizada do aprendizado. Está nas sutilezas capazes de nos sinalizar um caminho.
Como maravilhosamente disse Cecília Meireles em “A arte de ser feliz”:
“Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.”
(… que possamos chegar ao fim desta jornada com o olhar de quem aprendeu a enxergar).
Liliene Dante.
* Agradecemos a Rita de Cassia Barbosa Bragança, Coordenadora de Educação Básica, que muito atenciosamente nos forneceu informações sobre o atendimento de pessoas com autismo na rede municipal de ensino em Itabira.
* Para quem desejar mais informações sobre o assunto, o site da Associação de Amigos do Autista tem vasto conteúdo: https://www.ama.org.br/site/
* É possível encontrar em sites sobre o assunto os mais diferentes materiais para download que podem auxiliar os pais nesta caminhada. Entre elas, uma cartilha explicativa feita em parceria com o Ziraldo. Você pode baixá-la no site https://autismoerealidade.org.br/convivendo-com-o-tea/cartilhas/
ou em no link da nossa página: https://paroquiadasaude.com.br/wp-content/uploads/2020/06/Cartilha-Autismo-Uma-Realidade.pdf