Graziela Wolfart e Patricia Fachin | Tradução de Benno Dischinger
Ao defender a importância da liberdade e de sua relação com a Igreja, ele declara que “o cristianismo nos deixa como herança precisamente o liberalismo e a laicidade; trair estes valores, como frequentemente fazem as igrejas, significa trair a própria religiosidade”. E completa: “Eu sinto como dever cristão ajudar a Igreja a se libertar destes resíduos de poder temporal e a se tornar uma verdadeira defensora da liberdade”.
Estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do “pensamento fraco”. De sua produção intelectual, destacamos, Credere di credere (Milano: Garzanti, 1996), O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1996) e Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso (São Paulo: Record, 2004).
Gianni Vattimo estará na Unisinos no próximo dia 15 de setembro, quando irá ministrar a conferência “A narrativa de Deus na sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades”, durante o Simpósio Internacional Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, promovido pelo IHU.
IHU On-Line – O senhor defende um espírito religioso na história e argumenta que sem isto não existe uma verdadeira república. Por que e em que sentido a religião se torna importante para garantir a existência de uma sociedade laica e liberal?
Gianni Vattimo – Convenço-me sempre mais de que, no espírito religioso, há um componente de “nostalgia”, como quando se festeja o Natal, recordando a nossa infância, as orações aprendidas da voz da mamãe. A religiosidade é sempre, em certo sentido, uma “origem”, um passado que nos marca, como um patrimônio do qual vivemos consumindo-o, transformando-o, secularizando-o. Este passado serve para construir uma sociedade liberal? Direi que sim. Como escreve Nietzsche: “ainda é preciso ter sido religioso…”; sociedade liberal e sociedade laica são resultados de uma pertença religiosa da qual nos libertamos aos poucos, conservando, no entanto, muitos traços dela, que constituem seu sustento. É preciso ter uma religião ou uma família para trair, para poder ser verdadeiramente livre. É como se cada um de nós devesse, para tornar-se liberal, retraçar em si a história da secularização: ontogênese que repete a filogênese, ou como a Fenomenologia do espírito, de Hegel…
IHU On-Line – Quanto ao espírito religioso, quais são os ensinamentos que ele oferece à sociedade ocidental? Como pode contribuir para uma ética na política?
Gianni Vattimo – Não creio que se possa falar do espírito religioso em abstrato. Só posso falar dele em referência à minha – nossa – herança religiosa: cristianismo, judaísmo etc. É verdade que, na religiosidade, como a aprendemos do Cristianismo, há aquilo que Schleiermacher chamava de “o puro sentimento da dependência” – sou criatura, provenho de, não me criei por mim… Será este um traço universal da religião? Não estou seguro de que posso afirmar isso. Por exemplo, o sentido do sagrado, como o descreve Rudolf Otto (numinosum, fascinans, tremendum), já me parece um tanto diferente. Se eu penso no cristianismo e em suas origens judaicas, direi que o que a nossa religião tem a ensinar à política é o espírito de caridade, ou também o que Schopenhauer chamava de altruísmo, a vitória sobre a vontade de sobrevivência a todo custo etc.
IHU On-Line – Sobre questões polêmicas como a pena de morte, o aborto e a eutanásia, por exemplo, Estado, Igreja e diversas religiões entram em conflito devido a ideologias opostas. Neste sentido, como deve prosseguir a relação entre Estado, Igreja e religiões? Como garantir a liberdade em momentos de conflito?
Gianni Vattimo – Precisamente, o liberalismo que herdamos da secularização cristã oferece uma guia neste caso: o valor da pessoa humana (também os cabelos de vossa cabeça estão contados, diz Jesus…) é a liberdade. Não há “verdade” objetiva ou valor supremo que esteja acima disto (Que dará o homem em troca da alma – ou seja, de sua liberdade?). O Estado deve funcionar segundo leis que tenham o consenso exclusivamente em sua base – e, naturalmente, isto é sempre um efeito a ser ainda aperfeiçoado, pois todos nascemos numa ordem social já dada que, no entanto, devemos ter o direito e os modos de modificar, reconstruir, por em discussão. Uma Igreja é a comunidade dos crentes que se reúnem para rezar e exercitar de todas as formas o amor de Deus e do próximo. Como cidadãos, agirão na política segundo aquilo em que creem. Mas, pelo mesmo respeito à liberdade que devem ter aprendido de seu patrimônio cristão, eles respeitarão esta liberdade de todos. O cristianismo nos deixa como herança precisamente o liberalismo e a laicidade; trair estes valores, como frequentemente fazem as igrejas, significa trair a própria religiosidade.
IHU On-Line – O que deveria fazer parte da relação entre Estado e Igreja? Como estas instituições podem ajudar no sentido de construir uma sociedade mais solidária e ética?
Gianni Vattimo – Estado e Igreja não são duas essências estáticas, são instituições históricas que mudam e se transformam. Hoje, em geral, no mundo cristão-ocidental, a relação tende a se configurar frequentemente como um conflito: a Igreja (falo também e, sobretudo, da italiana) exercitou na história da Europa e do Ocidente um poder também temporal que tinha suas razões (a queda do Império romano, a necessidade de certa autoridade estável), as quais hoje são obstáculos à liberdade. Eu sinto como dever cristão ajudar a Igreja a se libertar destes resíduos de poder temporal e a se tornar uma verdadeira defensora da liberdade.
IHU On-Line – Por que, a seu ver, independente de religiões ou crenças, a humanidade carece de ações de caridade?
Gianni Vattimo – Entrará aí o “pecado original”? Eu tendo a identificar o mal com o domínio, a vontade de opressão, o instinto da posse, que parecem depender da vontade de conservar-se e intensificar a própria vida. A ideia de que haja uma vida além da morte, ou, de certo modo, um sentido da história que não se identifica com a minha existência individual no mundo, deve funcionar como um limite à violência. A humanidade, como a conheço, é assim, não sei se dependeria do pecado de Adão (mas, também este, de onde vinha?). O que posso fazer é procurar limitar, em mim e no mundo, a violência que se exerce por toda parte.
IHU On-Line – Se cada ser humano tem uma percepção pessoal sua sobre vida, morte, moral, costumes, que leis devem reger este Estado laico? Na prática, é possível separar domínio público e domínio privado? Como garantir a dignidade humana de escolha?
Gianni Vattimo – Também aqui não creio que haja soluções universais. Há jogos de forças históricas, que deveriam se voltar para o respeito da liberdade de escolha de cada um, a fim de que esta não lese a igual liberdade de todos. Liberalismo, mais uma vez, com a consciência de que não existe jamais, estaticamente, uma ordem da liberdade, pois ela é sempre de novo conquistada. A existência, como ensinava Heidegger, é sempre projeto, jamais conservação de uma ordem ideal.
IHU On-Line – Também se muitos percebem o secularismo (ou a secularidade) como uma oportunidade a fim de que a religião volte a viver no coração dos homens, e não como um trabalho antirreligioso, como o senhor percebe o diálogo entre os cristãos e esta pluralidade de religiões?
Gianni Vattimo – Creio que o encontro com outras religiões, como com outras visões filosóficas do mundo ou outras morais, me constrinja utilmente a tomar consciência da finitude de minha colocação histórica. Posso ser sinceramente crente e sinceramente relativista? Creio que sim, e até creio dever sê-lo. Estou sempre disponível a ser desmentido. Naturalmente, para resistir nesta condição, devo ser aquilo que Nietzsche chamava de “um super-homem”, mas Jesus o chamaria somente de um homem caritativo, que mantém a porta de sua casa aberta a todos.