Frei Jacir de Freitas Faria [1]
Celebramos a festa do Corpo e Sangue de Cristo, que em latim se diz Corpus Christi. Para compreender o sentido dessa celebração, vamos tomar como referência um dos textos bíblicos, 1Cor 11,23-26, que fala da celebração da Páscoa de Jesus com os discípulos, da qual originou a Eucaristia. Primeiramente, duas perguntas. Qual a relação entre a Eucaristia e Corpus Christi? Por que e como comungar? Vejamos, primeiro, a história dessa celebração que foi instituída na Igreja pelo decreto do papa Urbano IV, em 1264, no qual se afirma que a data deveria ser numa quinta-feira, sessenta dias após a Páscoa cristã, de modo que fosse feita a memória da instituição da Eucaristia por Jesus. Dessa forma, Corpus Christi tornou-se uma celebração de caráter devocional, uma vez que a verdadeira festa da Eucaristia da Igreja é aquela que se celebra na noite da quinta-feira santa, quando se celebra a memória da instituição da Eucaristia.
Na sua origem, a festa de Corpus Christi veio da religiosa agostiniana e, mais tarde, santa Julian de Mont Cornillon (1193-1258). Conforme se difundiu na Europa, essa religiosa teve uma visão divina, na qual se exigia que se incluísse no calendário da Igreja uma festa anual para comemorar o sacramento da Eucaristia.
Tudo começou em 1230, na paróquia de Saint Martin, em Liège, Bélgica, onde se realizou uma procissão eucarística no interior da igreja. Dezessete anos mais tarde, ela foi para as ruas e tornou-se festa nacional na Bélgica. Em 1264, essa celebração do “triunfo eucarístico” ganhou expressão mundial, sendo celebrada nas ruas, como desejava o papa.
O Concílio de Trento (1545-1563) – em resposta a Lutero que negava a transubstanciação, isto é, a presença real de Cristo na Eucaristia -, de certo modo, incentivou tais manifestações para fazer frente às ideias de Lutero. Foi dessa oposição a Lutero que surgiu a adoração do Santíssimo e as grandes e solenes procissões eucarísticas.
No início do cristianismo, uma das dimensões mais acentuadas da Eucaristia era a da ação de graças da comunidade que se reunia para atender ao preceito do Senhor de celebrar a memória de sua morte e ressurreição. Até o concílio de Trento, muitas discussões foram feitas em torno ao modo sacramental da celebração eucarística. Na baixa Idade Média (sec. XI-XV), o acento recaiu sobre o caráter milagroso, quase mágico, da “consagração” do pão e do vinho, desvinculado do conjunto da prece eucarística. A dimensão de ceia pascal (comer e beber juntos) cedeu à de adoração. Para muitos, bastava ver a hóstia consagrada para adorá-la! Também, nesta época, a grande maioria dos fiéis não comungava mais durante a missa. Inclusive o termo “comunhão espiritual” adveio dessa compreensão reducionista do mistério da Eucaristia. Não foram poucos os fiéis que receberam a comunhão eucarística apenas como viático, ou seja, momentos antes da morte.
Textos bíblico, de modo especial 1Cor 11,23-26, conforme memória recebida pelo apóstolo Paulo, Jesus tomou o pão e disse: “Tomai, isto é meu corpo”. Tendo nas mãos uma das taças de vinho que os judeus tomavam na ceia pascal, no caso, aquela tomada depois da refeição, Jesus disse: “Isto é o meu sangue”. Jesus se oferece como alimento (pão) e sangue derramado em favor de muitos. O pão é o sustento da vida comunitária. O sangue, na visão judaica, representava a vida (Deus). Outros testemunhos relatam que as primeiras comunidades se reuniam aos domingos para uma “ceia do Senhor” ou para a “fração do pão”. O nome Eucaristia, substituindo ceia do Senhor e fração do pão, apareceu somente entre os anos 90 e 110 E.C.
A Eucaristia, além de ser celebração do sacrifício de Jesus na cruz é, também, memória do evento salvador. Quem vai à missa não o faz por sacrifício pessoal, nem por obrigação, mas em atenção ao mandato de Cristo de celebrar o seu memorial: “Fazei isto em memória de mim”. Na comunidade reunida se dá a presença real de Cristo na Eucaristia, ao celebrar o sacrifício de Cristo, fazendo sua memória, proclamando o ressuscitado, rendendo graças a Deus e se associando a Ele. Portanto, jamais podemos separar os sinais sacramentais do corpo e sangue Cristo da sacramentalidade da comunidade que se reúne, pois o que se pede durante a prece eucarística é que comungando destes dons, ela (a comunidade) se torne um corpo eclesial, formando um corpo eclesial. Foi a teologia pós-Concílio Vaticano II (1962-1965), sem renegar a dimensão sacrificial da eucaristia, que recuperou a dimensão de ceia pascal, de memorial da paixão e morte de Cristo da Eucaristia.
E nessa perspectiva que vem resposta à pergunta sobre o como e por que comungar. Portanto, podemos e devemos comungar pelo fim das desigualdades sociais e raciais, em solidariedade com e nos corpos desfigurados do ‘corpo de Deus’ que andam pelas ruas clamando pela paz e o bem de todos. “Comunhão não é prêmio para os perfeitos”, como afirmou o Papa Francisco. E ele ainda acrescentou: “A comunhão é um dom, um presente, é a presença de Jesus na Igreja e na comunidade. Eu nunca neguei comunhão a ninguém”.[2] Termino pensando nos recasados que vivem a fé em comunidade e se negam a receber a comunhão. Por qual motivo? Não se justifica privar de receber o corpo de Cristo. Por fim, podemos e devemos comungar o corpo de Cristo que se fez carne e nos convoca ser solidários no altar da vida, nas ruas sem tapetes e nas igrejas domésticas, as famílias. Amém!
Fonte: Franciscanos
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/612897-eu-nunca-recusei-a-eucaristia-a-ninguem-a-comunhao-nao-e-um-premio-para-os-perfeitos