A Vale paga o alto preço da ganância do deus mercado

A velha estatal Cia Vale do Rio Doce (CVRD) foi a maior empresa de exploração de minério de ferro do mundo. Era grande e elegante como o próprio nome. Até o final da década de 1990, ocupou a pole position no seu segmento do mercado global. Depois da privatização, a Vale virou uma dissilábica e caiu para o segundo lugar. Hoje, encontra-se atrás da australiana BHP Biliton. As duas multinacionais detêm o controle acionário da catastrófica Samarco.

A antiga CVRD tinha alguns concorrentes internos. O grupo Caemi (proprietário da “Minerações Brasileiras Reunidas- MBR) era o principal deles. A brasileira Samarco de Mariana e a alemã Ferteco de Congonhas/Brumadinho também disputavam clientes com a grande Cia.

No dia 6 de maio de 1997, o governo brasileiro (leia-se o tucano FHC) vendeu a mineração pela bagatela de 3, 3 bilhões de reais. Na lata, o patrimônio público foi descaradamente doado. Um dado numérico ilustra significativamente essa “entrega”: as reservas minerais da empresa estavam avaliadas em 100 bilhões de reais, na ocasião.

Nas mãos da iniciativa privada, a Vale implantou uma agressiva e arriscada estratégia mercadológica. De cara, decidiu literalmente eliminar a concorrência interna. Numa só tacada, comprou o grupo Caemi e as empresas Samarco e Ferteco. Um detalhe: o negócio foi feito com as “porteiras fechadas”. A Vale pagou e levou de lambuja equipamentos, passivos ambientais e profissionais da área técnica. No caso específico da Samarco, até a administração manteve-se autônoma.

E assim começou a tremenda encrenca em que se meteu “a ex- joia do estado brasileiro”. Os depósitos de rejeitos das usinas de beneficiamento de minérios adquiridas se transformaram num “nó górdio”. Veja bem: a Vale não construiu as barragens da Samarco, Ferteco e MBR. No ato da compra, porém, ela assumiu também a responsabilidade legal sobre o sistema operacional dessas estruturas, que já funcionavam de forma arcaica. O trabalho de manutenção, por exemplo, era uma rotina do pessoal encampado na negociação de compra e venda(os bois das porteiras fechadas).

As barragens de Itabiruçu e Pontal, aqui em Itabira, consideradas as maiores do mundo, são uma realização de técnicos da antiga CVRD. Nesse imbróglio todo, uma pragmática pulga atrás da orelha provoca fatal interrogação: as barragens do quadrilátero ferrífero mineiro estão com prazo de validade vencido? Observe a seguinte cronologia do apocalipse : a contenção de rejeitos do Pontal foi construída em meados da década de 1970. Itabiruçu foi parida no início dos anos 80. O sistema da Samarco é de 1976 e a “coisa” da Ferteco mais ou menos da mesma época. Agora veja a sequência de desmoronamentos desses castelos de lamas: primeiro estoura a barragem de Mariana. E ninguém ainda explicou claramente o motivo desse rompimento. Agora a de Brumadinho desliza morro abaixo.

E aqui surge a pergunta de tão óbvia, assustadora: o que virá na sequência? Vai dar a lógica? Enfim, resta um pequeno alívio para os itabiranos: os ultrapassados modelos a montante que “auto se destruíram” não são construções originais da Vale. Pelo menos, até agora, as barragens de responsabilidade direta da ex- estatal não apresentaram indícios de problemas (ainda).

Mas, no fundo no fundo, a mineradora está pagando um elevado preço pelo monopólio da exploração do minério de ferro brasileiro. Essa tragédia toda, então, é a principal consequência da ganância insaciável do deus mercado. E, pior: esse deus se alimenta vorazmente de vidas (humanas e animais).

 

Fernando Silva – jornalista