Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
O filósofo alemão, Alexander Baumgarten (1714-1762), em sua obra Estética: a lógica da arte e do poema lança as bases filosóficas para a estética como ciência moderna. Baumgarten, contudo, rompe com o modo tradicional de refletir o belo e a verdade. A filosofia antiga sempre pensou os problemas a partir de uma razão hegemônica que jamais admitia as reações provenientes dos sentidos como sendo dignas de confiança, pois a razão considerava os sentidos como obscuros e suspeitos, tendo em conta que, no universo grego, os mesmos aprisionam a alma em falsas ilusões, impedindo-a de contemplar as verdades absolutas, acessíveis unicamente pela Ideia, nunca pela via do sentido. Baumgarten, contudo, inverte este modo grego de conceber o belo, encontrando-o, portanto, no reino da percepção sensível. Neste sentido, tem-se a seguinte afirmação nas páginas iniciais de sua obra: “A estética (a teoria das artes liberais, a doutrina do conhecimento inferior ‘gnoseologia inferior’) é a ciência do conhecimento sensível” (BAUMGARTEN, § 1). Para a filosofia esta afirmação é revolucionária, pois aquilo que antes era marginalizado e sinônimo de inverdade (o mundo sensível), de agora em diante com o nascimento da estética como disciplina filosófica, conquista cidadania, assumindo lugar de destaque e critério determinante para a nova maneira de filosofar. No mundo sensitivo, portanto, está também a verdade e o belo, coisa que antes era possível apenas se passasse pelo tribunal da razão, ou seja, da pura abstração.
Esta provocação filosófica pode ser muito significativa para uma reflexão teológica sobre a cruz. Isso pelo fato de que também no madeiro divino há uma maneira revolucionária de conceber a verdade e o belo e, justo neste aspecto, a teologia clássica e a filosofia antiga têm muitas dificuldades em acolher tal novidade, visto que toda a vida cristã consistia numa busca pela visão beatífica, as virtudes mais elevadas e eternas, apartadas da realidade sensível. Servia para tal escopo a ascese e os sacrifícios, esforço humano e dedicação para conquistar a visão beatífica. Neste sentido, uma verdade e uma beleza embreadas na dimensão do meramente humano seria algo absurdo para o mundo pré-moderno. Mas na cruz ocorre algo bem diferente, pois a pura razão não é o suficiente para dar-se conta do que ali ocorre. Na cruz, tem-se o universal no contingente, o infinito no finito, o belo no feio, a ordem no caos, o racional no absurdo. A cruz nos fornece uma leitura hermenêutica que elabora um novo estatuto para repensarmos os conceitos de verdade e de beleza.
O que insistimos aqui é interpretar o acontecimento da cruz como elemento estético que se situa no âmbito das sensações (do mundo do “sentir”), elemento tal que pretende dar credibilidade ao discurso cristão que emerge da cruz de Cristo, ou seja, não permitir que a cruz caia no reino do esquecimento, pois sem a cruz o cristianismo é inútil.
Qual é, portanto, a natureza da beleza que está na cruz e como se pode captá-la? Se o apóstolo Paulo já havia constatado que para a filosofia o crucificado é uma loucura, então resta-nos a análise a partir dos nossos sentidos, ou seja, temos que considerar a análise estética, da percepção sensível. No entanto, na cruz se vê um homem sem aparência e sem beleza, porém pleno de sentimentos. O que captam os nossos sentidos é aquela beleza que não está na exterioridade, mas reside em seu interior, na sede de todos os sentimentos: o seu coração. O Crucificado não pode ser engaiolado nos conceitos racionais da filosofia, pois Ele se move no âmbito do sentir com, pois é justo a Compaixão que se torna a filha eminente de sua beleza. A estética da cruz deve ser colhida a partir das atitudes e motivações de um crucificado, nunca jamais nos traços externos daquele corpo suspenso no madeiro. A estética da cruz motiva-nos a sentir as batidas de um coração de um homem fiel a um projeto de vida e apaixonado por um Deus que, mesmo quando faz silêncio no calvário, permanece firme, pois crê que o seu Pai lhe fará justiça na hora mais escura de sua existência.
O sentir deste homem que se fez escândalo e loucura, porque escapa a toda forma de explicação filosófica, tem o seu desfecho estético nas palavras de um centurião romano: “Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus” (Mc 15,39). O sentir do crucificado é tão relevante a ponto de transbordar e alcançar o coração de outro homem que não enxerga beleza externa ali na cruz, como é o caso do centurião, mas sente que há uma verdade e uma beleza naquele crucificado que não se encontram nos reinos deste mundo. Outro aspecto da estética do crucificado reside na força de um sentir capaz de transformar uma vida condenada numa nova existência e esta mudança se constata também na sina dos outros crucificados: “Lembra-te de mim quando vieres em teu reino (Lc 23, 42)”.
É incrível como esta forma de colher a beleza da cruz operou tanto impacto na vida de alguns. Não custa aqui lembrar de Santa Dulce dos pobres, um corpo cansado, franzino e frágil, desprovido também de beleza grega, mas tão plena de sentimentos nobres pelo próximo porque entendeu em profundo o significado da cruz de sua missão. A cruz para ter significado deve nos fatigar, pois só assim aprendemos a sentir compaixão pelo próximo. O que a estética da cruz diz a nossa cultura hodierna, tão agarrada a uma beleza exterior e infértil, é que uma vida se torna bela só se for abraçada com o peso das cruzes que nos desafiam. É justo esta experiência que nos ensina a viver mais da beleza interior que de uma aparência externa infértil e ilusória.
Fonte: franciscanos.org.br
Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp, é missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente reside em Camaragibe – PE, no Seminário para a etapa do Postulantado dos Passionistas.