Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG) e presidente da CNBB
Revisitar episódios da história é oportunidade para o aprendizado de lições valiosas que reavivam o sentido adequado de entendimentos e mostram a importância insubstituível da memória de um povo, do grupo familiar e de toda instituição. Como assevera o entendimento popular, “a história não começa agora”. Muitos precederam esta estação do presente, apontando que os recomeços e as novidades precisam se assentar em alicerces de experiências vividas, conquistas alcançadas e ofertas. O propósito é retomar a força ilustrativa e indicativa de um episódio narrado no Antigo Testamento, capítulo onze do Livro dos Números. Trata-se de importante pronunciamento do líder Moisés na desafiadora missão de conduzir o seu povo a um ciclo novo de vida. Tarefa complexa e exigente particularmente no conjunto de uma sociedade. Requer mobilização e comprometimento mais amplos com garantia de desempenho qualificado. Não são suficientes o desempenho e o envolvimento de apenas alguns líderes, perante a extensão e exigências da realidade vivida pela sociedade, ou mesmo no interno de uma instituição. Retornando ao Livro dos Números, narra-se a murmuração do povo aos ouvidos de seu Senhor. Havia uma grande insatisfação relacionada às circunstâncias desafiadoras enfrentadas pelo povo no decurso da travessia rumo ao novo ciclo de vida. Muitos outros agravantes incitavam o povo, a exemplo da gula incontrolada a instigar corações e entendimentos, de modo a fragilizá-los e convencê-los que a situação melhor seria aquela que os enquadravam em uma “zona de conforto” mesmo nos limites da escravidão.
As lamúrias se multiplicavam e tudo pesava sobre os ombros de Moisés no exercício de sua liderança, instituída por escolha divina. Moisés chega a dizer que não daria conta de “carregar” todo aquele povo. Algo tão pesado que o leva ao destempero de pedir ao seu Senhor que lhe tirasse a vida. O desespero causado por tamanha responsabilidade motiva Moisés a dizer: “Que eu não veja mais minha desgraça”. O Senhor ampara o líder que Ele escolheu e ordena-o a selecionar 70 homens, líderes do povo, reunindo-os na tenda do encontro. Retira algo do espírito que repousava em Moisés e oferta aos 70 líderes para que o ajudem a carregar o peso daquela responsabilidade. E os escolhidos profetizam – profecia como serviço de liderança e condução do povo na direção da terra da liberdade e da paz, de compreensão da razão pela qual saíram do Egito, entendendo a oferta de uma vida nova dada amorosamente por seu Deus e Senhor. Os diálogos de Moisés revelam a dureza da realidade e explicitam as urgências de respostas que efetivem avanços e garantam inegociáveis e urgentes condições de vida melhor.
Os escolhidos começaram a profetizar e pararam. Somente alguns poucos continuaram, e sem profecia, o povo não avança na direção da promessa. Moisés então foi advertido, em razão dos poucos que persistiram, como se um erro estivesse sendo cometido. Até seu ajudante desde os tempos da juventude o aconselhou: “Meu senhor, manda-os parar”. Com a reação de Moisés, a compreensão da importância insubstituível da profecia na vida do povo atinge o seu ápice: “Quem dera que todo o povo do Senhor profetizasse, e que o Senhor pusesse sobre ele o seu espírito”. Aqui, Moisés mostra, com clareza, que a condução do povo e a conquista de circunstâncias que garantam a justiça e a paz dependem intrinsecamente da voz profética, ou seja, o povo, na condição de profeta, indicando a força educativa imprescindível da profecia, capaz de edificar e induzir à profunda sensibilidade social – alimento do sentido de solidariedade, fundamental para a reorganização dos funcionamentos da sociedade, numa condição justa e fraterna. Profecia compreendida muito além daquilo que possa caber numa crítica qualquer, por vezes significando apenas a satisfação de sentimentos individuais que não se operam nem se concretizam em posturas e ações com poder transformador. Para o líder Moisés, profetizar é indicação da força educativa e essencial que ajuda o conjunto de uma sociedade a se reorganizar num tecido social e político de qualidade.
Construir nova compreensão e consequentemente novas operações é valor intrínseco da profecia. Significa também cuidar do que se fala, não se deixar levar pelas facilidades contemporâneas na maneira de se comunicar. A profecia não é, pois, discurso agoureiro, mas próprio da gestação da esperança, com força crítica de correções e propriedades para apontar soluções além de simples constatação de contextos e circunstâncias, para leitura analítica da realidade, engenhando o “edifício” da justiça e da paz social. A profecia denuncia e atua na remodelagem de esquemas e processos. Do seu cerne brota a força moral e educativa, que aponta erros e indica direções novas, impulsionando respostas para a superação de vergonhosos descompassos, a exemplo da cruel desigualdade social.
A grave crise socioeconômica e política na vida da sociedade brasileira urge pelo exercício da profecia como instrumento eficaz de correção de rumos, de entendimentos, de coragem para adequada solução. Por isso mesmo, pela sua importância, a profecia, deve também anteceder escolhas partidárias e se balizar no horizonte do bem comum. É de todo o povo a tarefa profética, com ajuda especial das lideranças, mas recai, particularmente, como responsabilidade, sobre os cristãos. Instigados na consciência de seu dever, os cristãos são possuidores de uma herança que exige comprometimento pela palavra, com força de correção e de edificação do urgente novo momento, que se espera e deve surgir pela voz de sua profecia.
Fonte: CNBB