Por Frei Sandro Roberto da Costa
Ao propor à Igreja que discuta sobre o tema da sinodalidade, o Papa Francisco, uma vez mais, traz à tona um dos elementos que fazem parte da essência do modo franciscano de ser. Mesmo que nunca tenha usado explicitamente a expressão “sinodalidade”, Francisco de Assis, desde que “o Senhor lhe deu irmãos”, foi profundamente “sinodal”, caminhando com seus companheiros, na consecução do projeto do Reino, sobretudo a partir do princípio da comunhão, em fraternidade e na minoridade.
Na Fratelli Tutti o Papa apresenta suas perspectivas da experiência sinodal, aplicada à solução de conflitos nas comunidades. Segundo ele, a palavra syn – hodos significa não tanto forjar acordos, mas reconhecer, valorizar e reconciliar diferenças, num plano maior, onde possa ser mantido o melhor de cada um. Como ele mesmo afirma: “Seria mais fácil conter as liberdades e as diferenças com um pouco de astúcia e algumas compensações; mas esta paz seria superficial e frágil, não o fruto duma cultura do encontro que a sustente. Integrar as realidades diferentes é muito mais difícil e lento, embora seja a garantia duma paz real e sólida. Isto não se consegue agrupando só os puros, porque ‘até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder’” (Fratelli Tutti, 217).
Neste texto não vamos nos debruçar sobre o que significa sinodalidade, que supomos por demais conhecido. Nosso objetivo é partilhar algumas reflexões, a partir de algumas indicações do “magistério franciscano”, que podem nos iluminar no modo como a “cultura da sinodalidade” pode ser colocada em prática em nossas Fraternidades, em nossas relações fraternas. Vamos recorrer a alguns apontamentos muito interessantes e oportunos apresentados pelo Bispo de Roma, num livro escrito em 2020, no contexto da Pandemia de Covid-19: “Vamos sonhar Juntos: o caminho para um futuro melhor” (Editora Intrínseca, 2020).
Papa Francisco e algumas pistas para colocar em prática a Sinodalidade
Na Evangelii Gaudium há uma expressão que Francisco retoma ao longo de vários de seus escritos: “O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada” (EG 1,2). No já citado livro “Vamos sonhar juntos”, ao tratar explicitamente do tema da sinodalidade, o Papa volta a usar esta expressão: “Antes de falar sobre a forma como podemos transpor algumas das brechas e divisões na nossa sociedade, a fim de construir a paz e o bem comum, precisamos considerar a ‘consciência isolada’” (Vamos Sonhar…, p. 79). O que Francisco quer dizer com “consciência isolada”?
Consciência isolada, explica o Papa, é aquele tipo de consciência que prevalece em indivíduos e grupos fechados em seus próprios interesses e pontos de vista, incapazes de se abrir ao diálogo, duros de coração, que vivem se lamentando, desdenhando e julgando os outros. Espíritos inflexíveis, como aqueles que tanto trabalho estão dando ao próprio Francisco em seu processo de reforma. Formados em um esquema mental pautado pela rigidez, ancorados numa suposta “ortodoxia”, são incapazes de se abrir ao novo, às mudanças necessárias e urgentes. Como diria João XXIII, são verdadeiros “profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”. Este tipo de comportamento é um sério obstáculo à consecução de projetos comuns, de harmonia entre as pessoas, nas instituições, na união de mentes e corações. A sua superação pode ajudar, não apenas na Igreja, mas também à sociedade em geral e a outras organizações que defendem o bem comum, que se pautam pelos princípios do Evangelho, em defesa da vida, na promoção da paz.
Para se superar a consciência isolada, o Papa indica o caminho da “acusação de si mesmo”, expressão inspirada nos escritos de Doroteu de Gaza, um Padre da Igreja do século VI. “Acusar-se a si mesmo” é reconhecer-se como se é, é esforçar-se na busca do “auto conhecimento”, não ficar apegado a uma falsa imagem de si mesmo. Nesse processo, ter a humildade de reconhecer as próprias falhas, para reconhecer-se dependente de Deus e abrir-se à atuação da graça.
Um outro elemento que dificulta a vivência da sinodalidade em nossas relações fraternas, em nossas reuniões e encontros, é o que o Papa Francisco denomina de “mau espírito”: o espírito de arrogância e de superioridade, que se esconde por detrás de argumentos válidos, mas viciados de antemão, que impedem a livre discussão. Há interesses em jogo, há muitas suspeitas e suposições: “As suspeitas e suposições estão cheias de malícia, e nunca deixam a alma em paz”. As suspeitas geram desconfiança, mal estar, fofocas. É aquilo que comumente chamamos de “segundas intenções”, as “suposições”, o que não é revelado, não é tematizado, às vezes até inconscientemente.
Podemos identificar aqui a raiz de muitos conflitos em nossas Fraternidades, onde, em nossas discussões, capítulos, reuniões, há fechamento e irredutibilidade, radicalismo, às vezes disfarçados de argumentos válidos, mas que escondem interesses pessoais. Quando há inter-esses em jogo não há uma discussão livre, franca, objetiva. Inter-esses significa “estar entre”, o que está nas entrelinhas, que está escondido no “não dito”, mas que está ali, e não possibilita uma discussão aberta e sincera. Quando, numa discussão, num debate, há “interesses” escondidos em jogo, não ditos, a verdade nem sempre prevalece.
Um risco a evitar nas discussões é considerar as contraposições como contradições. Isso é um pensamento medíocre, dominado pelo mau espírito, o espírito do conflito, que também afeta o diálogo e a fraternidade. Não se trata simplesmente de negar a tensão entre dois polos, buscando a “paz a qualquer preço”. Essa não é a solução para um conflito, pois a tensão foi negada e abandonada, mas ela continua escondida, latente. E pode estourar a qualquer momento.
O Papa recorda a presença de um personagem importante que deve existir nas reuniões de grupo, nas discussões, para que a sinodalidade seja efetiva: o “reconciliador”, aquele que tem que “aguentar o conflito”, que consegue ver para além da superfície e das aparências, que conduz os envolvidos a chegarem a uma síntese, que não elimina nenhum dos polos, mas conserva o que é bom e válido em ambos, levando-os a um novo patamar de compreensão, a uma nova perspectiva. Essa é a função do líder maduro, positivo, que é capaz de ver todas as “variantes” de um problema, e apresentar soluções. Acenamos aqui ao papel desempenhado por Francisco de Assis no conflito entre o “lobo de Gubbio” e os assustados habitantes da cidadezinha medieval italiana.
O caminho sinodal também é caracterizado pela atuação do Espírito Santo. Discute-se em grupo, empregam-se os mecanismos humanos de discussão e de dinâmica de grupo, mas é preciso, sobretudo, estar atento àquilo que o Espírito Santo tem a nos dizer. Seja no Sínodo, seja em nossos encontros fraternos.
Para que isso aconteça é preciso que as pessoas confiem umas nas outras, que haja humildade, que haja sério empenho na busca do bem comum. Um elemento essencial nesse processo é a necessidade de um certo nível de maturidade para participar de processos grupais, de discussão, de debate. “Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo” (Fratelli Tutti, 48). Nem todo mundo tem essa maturidade ou a personalidade para vivenciar esses processos. Principalmente hoje, onde, em tantos ambientes, eclesiais, políticos, sociais, predomina o fechamento ao diálogo e o apego às próprias ideias.
Num exercício sinodal, as diferenças são expressas e polidas, até que se chegue, se não a um consenso, pelo menos a uma harmonia. Afirma Francisco: “A abordagem sinodal é algo de que nosso mundo tem muita necessidade hoje. Em vez de buscar o confronto, declarando guerra, com cada um dos lados esperando derrotar o outro, precisamos de processos que permitam expressar as diferenças, escutá-las e fazê-las amadurecer, para assim podermos caminhar juntos, sem necessidade de aniquilar ninguém” (Vamos sonhar…, 92). É um trabalho certamente difícil, que exige paciência, compromisso, investimento numa discussão madura e frutuosa.
A busca de relações sinodais em fraternidade
Na Admoestação XII Francisco de Assis afirma que “o eu é contrário a todo o bem”. Profundo conhecedor da alma humana, o Pobrezinho sabia que o apego ao “próprio eu”, às ideias próprias, sem se abrir ao diálogo, à escuta, à possibilidade de que a outra parte também possa ter alguma razão, era um sério empecilho às relações fraternas. Na mesma admoestação ele vai afirmar que o servo de Deus se reconhece como “o mais desprezível” e o “menor de todos os homens”. Não se trata aqui, evidentemente, de “masoquismo espiritual”, de rebaixamento e humilhação. Francisco de Assis refere-se à necessidade de não nos considerarmos o centro das atenções pelas coisas que realizamos. Tudo vem de Deus. E, em fraternidade, importa trabalharmos em sintonia, cada um com suas qualidades e talentos, também suas fragilidades, respeitando as diferenças, abrindo-nos aos outros, sempre em busca do bem comum, do crescimento do grupo, a serviço do Reino.
Dizia o ex-Ministro Geral Frei Giacomo Bini: “A palavra profética do carisma hoje, mais do que a pobreza, até mais do que a castidade, mais do que a oração… é aquela das relações fraternas”. E acrescentava: “A primeira estrutura da Ordem não é o convento, mas o frade menor e o frade menor em relação. […] Por isso, se querem construir qualquer coisa, comecem pela confiança e pelo respeito às diferenças”. BINI, Giacomo, “Ultima conferenza”, Frascati (7.05.2014), p. 6, em: https://ofmroma.files.wordpress.com/2014/08/noi-si-semina-fr-giacomo-bini.pdf .
Na Fratelli Tutti Papa Francisco faz menção à necessidade de sairmos de nós mesmos para criarmos comunhão, para estabelecermos relações que gerem vida: “… “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte” (Fratelli Tutti, 87).
Neste mesmo número ele afirma que o ser humano só se realiza plenamente como pessoa “no sincero dom de si mesmo aos outros”. Para conhecer nossa própria verdade, nós precisamos do encontro com os outros: o ser humano não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, a não ser saindo de si mesmo, indo ao encontro do outro: ‘Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro’. Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar” (Fratelli Tutti, 87).
Propostas do Papa Francisco para colocar em prática a Sinodalidade
O Papa propõe, numa síntese, três elementos que podem nos ajudar nos “processos sinodais” em nossas Fraternidades:
1) Escutar uns aos outros, com respeito e confiança, livres de ideologias e agendas pré-determinadas, livres de preconceitos. O objetivo não é chegar a um acordo por meio de uma competição entre posições opostas, mas caminhar em conjunto, a fim de alcançarmos a vontade de Deus, deixando que as diferenças entrem em harmonia.
2) A capacidade de mudar, estarmos preparados para abandonarmos nosso modo de pensar e nossas perspectivas, abandonarmos nossa rigidez e nossas intenções, e “olharmos para lugares que nunca vimos antes”: exercitarmos a abertura de mente, sem preconceitos, capazes de acreditar que, de onde menos se espera, possa surgir algo novo. Isso é o modo concreto de abrirmo-nos à ação do Espírito. Ele é capaz de revelar coisas novas, novos horizontes, criar soluções, que até então não tínhamos vislumbrado nem previsto.
A capacidade de mudar é um dos elementos importantes na vida de fraternidade. O grande inimigo da mudança é o desejo de segurança. Os caminhos de sempre são os mais seguros, mais claros, confiáveis. Apelamos às tradições para resistir às mudanças. O novo sempre implica risco, e a natureza humana foge, naturalmente, do perigo. Hoje está cada vez mais comum o fenômeno da “retrotopia” (Zygmunt Baumann), na Igreja e na sociedade em geral, idealizando o passado como se fosse um tempo de glória e de grandes realizações, negando-se a assumir o futuro, com todos os seus riscos, possibilidades e esperanças. Neste particular, esquecemos que Francisco e Clara foram pessoas que assumiram o novo em suas vidas, não ficaram apegados ao passado, não tiveram medo da mudança, nem de mudar.
3) Outro aspecto fundamental é a paciência, algo tão raro e difícil nos dias de hoje. Papa Francisco explica o que ele entende sobre a virtude da paciência: “A paciência refere-se ao aprendizado da tolerância recíproca, a saber tolerar-se uns aos outros. Isso é o que realmente ‘dá liga’ à comunidade. Trata-se de tolerar-se ativamente, ajudar-se de coração. É a paciência de esperar o irmão caminhar, como dizia Santo Inácio” (“A força da Vocação”, Paulinas 2018, p. 56). Francisco refere-se à Regra do Companheiro, quando, ao caminhar ao lado de um companheiro, devia-se ficar atento para que um não caminhasse mais rápido do que o outro, para que houvesse um mesmo ritmo. Significa ter paciência com os limites do outro. Na vida fraterna, significa fazer o esforço de apoiar-se e tolerar-se mutuamente.
Na Fratelli Tutti, o Papa oferece-nos ainda mais um instrumento para mantermos o espírito do diálogo na sinodalidade: a amabilidade. “A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes. Hoje raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros, para dizer “com licença”, “desculpe”, “obrigado”. Contudo, de vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (Fratelli Tutti, 224).
Quando falo de “amabilidade” aqui, penso numa das palavras mais caras e importantes ao carisma franciscano, e que está cada vez mais rara hoje em dia: a cortesia. Francisco de Assis foi o modelo do homem cortês. Clara seguiu seu exemplo. Os frades eram extremamente corteses entre si. As fontes transmitiram a alegria que os invadia quando se encontravam. Era uma cortesia que transparecia em toda sua vida, em seus gestos, nas palavras, nas relações humanas, com toda a criação, com Deus. São inúmeras as citações sobre o tema ao longo dos escritos. Penso que hoje, em nossas Fraternidades, precisamos ficar atentos à cortesia humana e cristã, que foi tão bem encarnada na pessoa de Francisco, em sua fraternidade, entre seus frades. O Dicionário Franciscano elenca alguns comportamentos que remetem à cortesia: a bondade, a discrição, a mansidão, a acolhida a compaixão, entre outros.
Francisco, desde que o Senhor inspirara nele o desejo da conversão, tornara-se aprendiz da cortesia e do afeto. Desde pequeno ele fora educado na escola das canções de gesta da França, dos cavaleiros da Távola Redonda, da busca do Graal do rei Artur. Era a escola do amor cortês, dos “cavaleiros medievais”, que expressavam valores éticos importantes, como o cuidado aos mais fracos, o respeito às mulheres, a hospitalidade. Mas em Francisco, a cortesia torna-se uma virtude divina, por causa do amor do Pai: “A cortesia é irmã da caridade, que extingue o ódio e conserva o amor” (Fioretti 37). A cortesia foi transformada por Francisco em afabilidade nas relações, entrega sem reservas a Deus, no cuidado aos leprosos e aos pobres, na cortesia e no carinho aos irmãos, no afeto, na acolhida e na ternura para com todos.
O que nós chamamos de “cortesia”, o Papa chama de amabilidade. E ele continua insistindo na necessidade de nos esforçarmos por ter um “comportamento” amável, afável, cortês: “Este esforço, vivido dia a dia, é capaz de criar aquela convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos. O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes” (Fratelli Tutti, 224).
Insisto nesse particular, porque me parece que está cada vez mais difícil educar para a cortesia. Em nome da competência, da produção e da eficácia, educa-se para a concorrência, para o individualismo, para o “cada um por si”. Em nossas Fraternidades, a cortesia, a amabilidade, o respeito, o cuidado, talvez possam ser os outros nomes da sinodalidade.
Fonte: Franciscanos
Frei Sandro Roberto da Costa é doutor em História da Igreja pela Pontifícia Universitas Gregoriana – Roma, Itália (2000). É diretor do Instituto Teológico Franciscano (ITF) de Petrópolis (está no terceiro mandato, 2007-2009/2010-2012). É professor no ITF e leciona as disciplinas História da Igreja Antiga e Medieval. É autor de inúmeros artigos na área de História da Igreja, História do Franciscanismo e da Ordem Franciscana, e História da Vida Religiosa.