Por Dom Jacinto Bergmann
Arcebispo de Pelotas (RS)
Trago presente, a estória do país dos poços. Ele, o país dos poços, era um lugar bonito, verdejante, um ponto de parada onde as aves vinham saciar-se e realizar as suas danças a céu aberto. O país dos poços era uma terra bem povoada, atraente, cheia de vida. Mas um dia aconteceu que o país dos poços tornou-se um devastador deserto. Com o passar do tempo, os poços tinham começado a calar a fonte que havia dentro deles. E, quase sem dar-se conta, deixaram de ser poços e se transformaram em depósitos de entulho. Todas as coisas que tinham deixado amontoar, acabaram por calar a identidade e a beleza dos poços. E como relegaram a água para o fundo, em redor dos poços começou a crescer o deserto. E com o deserto veio a solidão, o peso de uma vida em que as coisas acabaram por se virar contra ela mesma. Mas um dia um poço disse não! Esse poço tinha ouvido no mais fundo de si mesmo como que o borbulhar de uma música esquecida, que estava nele, mas há tanto tempo silenciada. E começou, então, a despejar o excesso para perseguir o rastro daquilo que o enchia de curiosidade. E, ao prosseguir nessa procura, sentia-se apaixonado. Em muitos anos, aproximava-se finalmente de um tesouro que não se comprava nem se vendia. Era uma realidade que estava nele. ERA ÁGUA! E como ele se tinha esvaziado, a água pode recomeçar a subir e a espalhar-se. E à volta daquele poço, a vida ressurgiu. Então os outros poços começaram a ser tocados pelo exemplo daquele. E como toda a água provinha de uma vigorosa nascente, foi possível reconverter aquele imenso deserto “.
A estória do país dos poços nos indica que “nós somos o país da água viva”. Nós, humanidade, brotamos da fonte eterna da “Água viva”; fomos feitos “à imagem e semelhança” dessa fonte.
Contudo, ainda, parecemo-nos mais com “desertos”. Assemelhamo-nos mais a montes de entulho do que a lugares onde a fonte da eternidade encontra a sua morada e a sua expressão. De repente, sentimos que a vida se esgota no mesmo instante, que tudo acaba naquilo que vemos, que a nossa esperança é só o efêmero, o momento, que como fumaça se esvai. A vida espiritual está abafada, o entulho de toda a ordem a está deixando submersa.
Mas a vida espiritual existe e é necessária!
Por isso, é fundamental tirar o “excesso de entulho” e fazer desabrochar do fundo de nós mesmos a fonte da eternidade. É essencial acolher a vida espiritual! É verdade que ela nos diz claramente: Não há caminho interior, caminho de “poço entulhado” para um “poço de água”, sem a coragem de nos esvaziarmos, de deixar fora o que nos pesa e atordoa, para poder acolher o sabor líquido daquela fonte adiada, mas afinal acessível no fundo de nós mesmos.
A vida espiritual existe e é necessária!
A vida espiritual não é uma teoria ou uma abstração. Não é um momento virtual nem uma projeção imaginária. É apenas isto: experiência, atenção, imersão. Sabemos como existe uma solidão escura e pesada, aquela que nasce quando olhamos para a vida e percebemos que nunca fomos amados. Essa é uma solidão terrível e, no entanto, tão frequente. Mas há uma outra solidão, luminosa, aquela em que dispensamos as palavras, porque estamos diante de uma presença transbordante viva, circulante. Não é a culpa ou a autoflagelação que nos converte. Transforma-nos, sim, a experiência de amor, de um amor desmedidamente apaixonado, como esse amor que Deus tem pelo gênero humano que nós somos. É no confronto com esse amor que mudamos continuamente. É por isso que a única solidão na qual podemos confiar, é a solidão que nos encaminha devagarinho para a “fonte da água viva” presente no fundo do nosso “poço”.
A vida espiritual existe e é necessária!
Fonte: CNBB