Sobre a mesinha, o jogo “cai não cai” ganha a atenção de Luísa e Laura, que precisam colocar algumas dezenas de varetas, uma de cada vez, nos buraquinhos do brinquedo. A cena, que poderia ser corriqueira no dia a dia de uma casa com crianças, aqui é acompanhada e direcionada pela estagiária em pedagogia Ana Lucya Freitas Ferreira (Aninha).
Laura tem 6 anos e Luísa 3. As irmãs são filhas do casal de advogados Rejane Perucci e Adriano Oliveira Duarte. Como qualquer criança, exigem atenção e cuidados.
No entanto, as exigências com Luísa são maiores, demandam mais tempo e uma dose extra de dedicação. Luísa faz parte de uma população estimada em 2 milhões de pessoas no Brasil – foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Há poucos estudos sobre o assunto. Os números no Brasil são baseados no que diz a Organização das Nações Unidas (ONU), que considera que aproximadamente 1% da população mundial pode ter autismo. Já a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 1 em cada 160 crianças tenha o TEA. Pesquisas mais controladas dão conta que esses números podem ser maiores.
Em 2018, o Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos EUA (Centers for Disease Control and Prevention) divulgou um relatório em que 1 em cada 59 crianças apresentaram o transtorno. O estudo foi obtido por meio da rede de monitoramento do autismo e deficiências (The Autism and Developmental Disabilities Monitoring), em 11 estados, mas considerando apenas crianças nascidas em 2006, com 8 anos de idade.
Outra dificuldade quando se trata do TEA é o diagnóstico por gênero. Há cerca de 4 vezes mais registros de autismo entre os meninos do que entre as meninas.
A trajetória de Luísa
Olhando Luísa, no espaço da casa preparado para que ela e a irmã desenvolvam as mais variadas atividades, ela parece apenas uma criança cheia de energia que gosta de mexer aqui e ali, se esconder debaixo da mesinha, escolher a boneca da vez, preferir as bolinhas às varetas do jogo… Não quis sentar para a foto, mas quis ela mesma usar a câmera para fotografar. Desistiu do cai não cai, abriu armários, remexeu num punhado de outras coisas e acabou pegando um carrinho de “compras” para “brincar” com a irmã Laura pela casa.
Mas o diálogo com a mãe Rejane e com a estagiária Aninha logo nos faz perceber que há mais na Luísa do que só um plugue carregado de energia. Ela exige um somatório de esforços extras em todos os sentidos.
Os primeiros sintomas do Transtorno do Espectro Autista foram percebidos na escolinha, quando Luísa tinha apenas 1 ano. Aluna do Colégio Nossa Senhora das Dores, foi a professora que percebeu certa “apatia” e “desinteresse” de Luísa diante de determinadas situações. Ao ser chamada, por exemplo, Luísa não “respondia”, não “dava atenção”. Mas foi em uma situação peculiar, quando um forte barulho fez todas as crianças chorarem em sala, exceto Luísa que não demonstrou qualquer reação, que a professora considerou realmente a possibilidade. A partir daí começaram as buscas por respostas.
A mãe relata que o primeiro diagnóstico descartado foi em relação à audição, assegurado por um otorrinolaringologista. O neurologista também descartou qualquer outro tipo de problema, alegando que o mais provável era que a professora não tivesse “habilidade para lidar” com a criança. Rejane discordou do diagnóstico médico – conhecia a estrutura da escola e seus profissionais uma vez que a filha mais velha, Laura, é aluna do Colégio há mais tempo.
Quem indicou o caminho à família foi uma terapeuta ocupacional que sugeriu à Rejane que levasse Luísa a um psiquiatra infantil especializado em TEA. Após cinco meses aguardando uma vaga para a consulta em Belo Horizonte, finalmente o esperado diagnóstico: “Na verdade foi um certo alívio; com o diagnóstico tudo ficou mais fácil, até para conseguir a cobertura do plano de saúde…” – diz Rejane.
A pandemia do novo coronavírus – refazendo a rotina
Em praticamente todo o mundo, as pessoas tiveram que se readaptar ou reinventar a rotina. No Brasil já são mais de 51 mil mortos pelo novo coronavírus. O isolamento social é uma condicionante para que esses números não se tornem ainda mais dolorosos.
Na casa de Rejane e Adriano a história é a mesma de muitas outras famílias – a pandemia mudou o ritmo e a estrutura de trabalho do casal. Há três meses, Rejane parou de trabalhar no escritório de advocacia que divide com o marido. Com as escolas fechadas, Luísa e Laura estão em casa.
Laura tem aulas on-line e é auxiliada pela mãe no desenvolvimento das tarefas e atividades propostas. Já Luísa, do maternal, teve o ensino regular interrompido, bem como as aulas de ballet e natação, além das várias atividades suporte do TEA (terapia ocupacional, fonoaudiólogo, psicólogo), já que ela não interage com os profissionais das terapias através do computador.
Agora é a mãe Rejane, com o auxílio de Aninha (de segunda a sexta), que procura manter em dia, apesar da nova realidade, as atividades de Luísa, que precisa de estímulos diários e de uma rotina bem definida – característica marcante na vida da maioria dos autistas.
A “vida organizada” é essencial para quem foi diagnosticado em algum dos níveis do TEA. Num pequeno varal, à altura da mãozinha de Luísa, ficam pregados vários cartões: hora de levantar, de lanchar, dormir, tomar banho, rezar… É com a ajuda deles que a criança vai se organizando nas 24 horas do dia e sendo despertada para interagir e reagir às atividades.
“Luísa pega às vezes o cartão (do lanche) e passa a mão em círculos na barriga, é uma forma de falar que está com fome. Outras vezes, pega o cartão seguinte para dizer que quer fazer aquilo (que está no outro cartão) pulando alguma atividade” – diz Rejane sorrindo.
Entre as várias condições clínicas comuns aos autistas, o problema no desenvolvimento da linguagem oral é uma delas. A fala de Luísa ainda está sendo construída.
Sem saber ao certo quando tudo isso vai passar, quando as crianças poderão retomar os hábitos diários, Rejane e Adriano vão se organizando. Assim como tantos outros pais, fazendo o melhor que podem pelos filhos, abrindo mão da própria rotina para estar ao lado deles.
Liliene Dante