Sínodo Pan-Amazônico – sob o olhar de Dom Evaristo Spengler

Para compreender a importância deste sínodo, é preciso ter um vislumbre da realidade deste gigante territorial chamado Pan-Amazônia. Uma realidade que passa bem longe das experiências vivenciadas pela Igreja Católica em regiões como a Sudeste, por exemplo, que é o centro do poder econômico do Brasil – mais de 50% do PIB Nacional (Produto Interno Bruto) vêm desta região.

Um estudo realizado pelo prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, apresenta números que dão conta desta brutal diferença entre a Amazônia e, pode-se dizer, o restante do país.

A Pan-Amazônia compreende nove países (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa) com uma área aproximada de 8,1 milhões de quilômetros quadrados e 37 milhões de habitantes, sendo que 67% desta área está em território brasileiro.

Este bioma é a “casa” de 2.779.478 aborígenes pertencentes a 390 povos reconhecidos e 137 povos ainda não contatados. 240 línguas diferentes de 49 ramos linguísticos compõem este cenário.

No Brasil, a Amazônia ocupa 5.217.423 quilômetros quadrados, o que representa 61% de toda a área territorial brasileira. Na região vivem 23 milhões de pessoas, 55,9% das populações indígenas do país. Destas, 305 etnias já foram quantificadas e ainda há diversos povos isolados.

A Igreja Católica na região amazônica brasileira

Atualmente, há 53 circunscrições eclesiásticas nesta região. São nove prelazias e 44 dioceses. Um total de 88 bispos entre ativos e eméritos. 2.599 presbíteros e 324 diáconos casados permanentes. A Prelazia do Marajó está inserida na Regional Norte 2 da CNBB que conta com 14 circunscrições distribuídas entre os estados do Pará e Amapá.

Conflitos

Não é preciso ir tão longe para ter uma noção dos conflitos que emergem em uma região tão farta em recursos naturais e fontes de riquezas (sobretudo as minerais) para compreender a dimensão do abismo socioeconômico que assola a região. Soma-se a isso, a marginalização de todo um povo culturalmente tão único que, como bem disse o Papa Francisco, sobreviveu e chegou até aqui – ainda que aos “trancos e barrancos”.

Embora os números não gritem nas redes sociais ou na grande imprensa, os conflitos geram, há décadas, centenas (talvez até mais) de mortes. São pessoas indefesas diante de um sistema corrupto e economicamente excludente, focado no enriquecimento e favorecimento de uma classe dominante, que recebe, tantas vezes e impunemente, a colaboração política e judicial para garantir o êxito de uma situação que se perpetua.

Não só a população indígena vem sendo vítima das ações das grandes corporações e “coronéis” da terra, como vários pequenos proprietários que durante toda a vida viveram basicamente da conhecida agricultura de subsistência e que, intimidados pelo poder das armas e das torturas, cedem seu ganho pão e sua dignidade.

Quem já se esqueceu do caso da irmã Doroth Stang, missionária norte-americana, assassinada em 2005 com seis tiros? Ela foi uma grande defensora de um projeto de desenvolvimento sustentável implantado no município de Anapu, no Pará. A iniciativa “azedou” os ânimos dos fazendeiros da região que se diziam ‘proprietários da terra’ na qual seria desenvolvido o projeto. Irmã Dorothy desenvolvia trabalhos focados em projetos de reflorestamento e de geração de emprego e renda para os pobres. Sim, para os preferidos do Senhor!

Sínodo da Pan-Amazônia: “Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”

O documento de trabalho (Instrumentum Laboris), publicado em 17 de junho pela Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, é fruto de um processo de escuta que teve início com a visita do Papa Francisco a Puerto Maldonado (Peru), em 2018, e prosseguiu com a consulta ao ‘povo de Deus’ em toda a Região Amazônica, sendo concluído com a II Reunião do Conselho Pré-Sinodal em maio deste ano.

“Seguindo a proposta da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), o documento se estrutura com base nas três conversões às quais o Papa Francisco nos convida: a conversão pastoral, à qual nos chama por meio da Exortação Apostólica Evangelli gaudium (ver-ouvir); a conversão ecológica, por meio da Encíclica Laudado si, que orienta o rumo (julgar-agir); e a conversão à sinodalidade eclesial, mediante a Constituição Apostólica Episcopalis communio, que estrutura o caminhar juntos (julgar-agir). Uma Igreja profética na Amazônia é aquela que dialoga, que sabe negociar e que, a partir da opção pelos pobres, busca propostas concretas em favor da ecologia integral. Uma Igreja com capacidade de discernimento e audácia diante dos abusos dos povos e da destruição de seus territórios, e que responde sem demora ao clamor da terra e dos pobres” (Trecho extraído do ‘Documento de Trabalho’).

A polêmica do celibato

Entre os vários temas apontados para as discussões durante o Sínodo, um deles, em especial, ganhou várias publicações, análises e dissertações na imprensa. Ironicamente, há ainda quem muito supervalorize alguns assuntos em detrimento dos outros ‘tantos milhões’ pertinentes à própria sobrevivência de todo o bioma amazônico.

Embora se trate de uma abertura sem precedentes na história da Igreja Católica, a discussão sobre a ordenação de homens casados para esta região, vai de encontro ao problema real da falta de presbíteros. Sobretudo, de homens ordenados que sejam “a cara da região amazônica”. Vale lembrar que a maioria dos sacerdotes que atuam neste território é proveniente de outros estados brasileiros e países.

“Há 11 bispos oriundos da Amazônia e exercendo seu múnus episcopal nos nove Estados da Amazônia, ou seja, 12,5% do total dos bispos vivos presentes na Amazônia em 2019.  Os bispos de outros Estados brasileiros são 44 (50% do episcopado da Amazônia). Os nascidos em outros países somam 33 prelados (37,5% do episcopado da Amazônia). Na Igreja Católica do Brasil há 19 bispos nascidos na Amazônia Brasileira, o que representa 0,4% do episcopado vivo atualmente: três amazonenses, 0 roraimense, 0 amapaense, quatro paraenses, três tocantinenses, sete maranhenses, hum mato-grossense, hum Acreano, 0 rondoniense. Na história episcopal brasileira desde 25/02/1551 dos 1172 bispos nomeados, houve 35 nascidos na Amazônia, entre vivos e falecidos: 0,3% do episcopado brasileiro: são 11 maranhenses, 11 paraenses, 4 mato-grossenses, 5 amazonenses, 5 tocantinenses, 1 acreano, 0 Rondoniense, 0 Roraimense e 0 amapaense. Será preciso rever não só o ministério presbiteral, o diaconato e até mesmo o rosto do episcopado na Amazônia. Padres, leigos, ministros, bispos e cardeais com rosto amazônico. Há espaço para centenas de ministérios e de expressões inauditas suscitadas pelo Espírito do Cristo Ressuscitado. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça!” (Trecho extraído do estudo realizado pelo prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP)

Principais pontos da entrevista com Dom Evaristo Spengler

Preparativos para o Sínodo

A Amazônia acolheu com muita alegria a convocação do Papa para o Sínodo, que tem como tema: Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia Integral. O sínodo tem dois eixos principais que são a evangelização e a preservação da Casa Comum – este santuário onde Deus habita na Amazônia. Houve um processo de escuta que resultou num documento preparatório para servir de base de apoio a essas escutas. O Papa tem uma metodologia muito importante, ele não quer apenas falar para o povo mas quer que o povo fale, quer escutar o povo. Ele tem esta sabedoria de perceber que o Espírito Santo age também na vida da Igreja como um todo e se revela. Foram mais de 82 mil pessoas escutadas formalmente em encontros, com sugestões, atas. Tudo isso foi enviado para cada país da Pan-Amazônia, que fez a sua síntese e enviou para Roma. E lá surgiu, então, o Documento Preparatório que servirá de base para os estudos e reflexões durante o sínodo.

Similaridades nos desafios enfrentados pela Igreja Católica na região Pan-Amazônica

A região amazônica, embora tenha muitos rostos e realidades diversificadas nas regiões, tem muita coisa em comum, que a une. Uma delas é a pouca presença de padres, de religiosos, as longas distâncias, as convivências com saberes e culturas tradicionais, os indígenas, os quilombolas, os povos ribeirinhos e, também, as ameaças externas à Amazônia. A Igreja tem uma grande preocupação hoje de conscientizar e preparar o povo para a defesa dessa casa comum – como vendo um sinal em tudo da presença de Deus naquela terra e naquelas águas.”

Ordenação de homens casados

“No mês de fevereiro deste ano (2019), houve em Roma um seminário pré-sinodal e lá se abordou muito essa questão da dificuldade do cristão da Amazônia de ter acesso a eucaristia. A eucaristia é o ponto mais alto da vida cristã, é o ápice. E o cristão não tem acesso, alguns deles apenas uma vez ao ano, a eucaristia. Isso é um escândalo para a Igreja. Como a Igreja não tem condições de dar a eucaristia a um batizado que participa frequentemente dela? E lá se falava, e depois chegou a entrar também no documento preparatório do Sínodo, da possibilidade de se estudar a ordenação de homens casados, já bem constituídos na sua família, pessoas mais velhas que estão em regiões remotas da Amazônia. Então seria pensar, não em menosprezar o celibato, a vida sacerdotal presbiteral celibatária – isso é um valor que a igreja vai continuar preservando, mas a pergunta é: será que essa seria a única forma de um ministro ser ordenado? E o sínodo coloca agora, muito abertamente, esta discussão que vai depender, claro, de todo o estudo e toda esta reflexão que será feita. Mas pode surgir, talvez, um novo tipo de ministro na Igreja. Um homem já casado que possa ser ordenado sacerdote. Isso não vai ser uma coisa que será ampliada para a igreja inteira, mas uma coisa muito localizada para situações de difícil acesso de ministros ordenados.”

A participação das mulheres na Amazônia (ministérios)

A igreja da Amazônia tem uma participação imensa de mulheres, mas na hora das decisões e dos ministérios, a mulher não é tão valorizada. O sínodo para a Amazônia quer também trazer este tema da mulher, como valorizá-la. O sínodo coloca no documento preparatório: haverá de fato a possibilidade de um ministério oficial para a mulher na igreja da Amazônia?”

O respeito à cultura local

No passado, os missionários que vieram para a Amazônia, vieram da Europa junto com os colonizadores. Nós temos um grande respeito por esses missionários, eles fizeram um trabalho belíssimo, transmitiram a fé. Mas na época era um outro contexto e muitas vezes se confundiu a fé com ‘civilização’. Então o europeu vinha de fora e trazia a fé e civilizava aqueles que eram vistos como selvagens. Neste sentido misturava-se evangelização com civilização. Hoje se percebe muito mais que a igreja tem que diferenciar o tema cultura do que é a fé. Então, cada povo pode viver da fé a partir da sua cultura. E o Papa tem pedido, neste processo preparatório do sínodo, que nós descubramos cada vez mais uma igreja com rosto amazônico, que expresse a sua fé a partir da sua cultura – a cultura dos povos tradicionais indígenas, quilombolas, ribeirinhos. E o Papa tem dito: se esse povo resistiu durante 500 anos, eles têm uma grande sabedoria a nos ensinar. Já tem ali a semente do Verbo plantado também no seu coração e devemos aprender como eles viveram esta fé ao longo deste tempo.”

As forças predatórias X o modelo socioambiental

O papa diz claramente que a Amazônia está sendo disputada. De fato, existem dois projetos na Amazônia. Um é o do capital, que é o modelo predatório, que vem para Amazônia buscar recursos naturais. Mas são pessoas que vão pra lá, exploram, se enriquecem e voltam, a riqueza não fica na Amazônia. Isso tem acontecido durante os 5 séculos que nós temos a presença de europeus e depois de outros povos na Amazônia. O outro modelo de convivência na Amazônia é o socioambiental, praticado pelos índios, pelos povos locais. Eles convivem tirando da floresta apenas aquilo que é essencial para a sua vida. Se hoje nós olharmos a partir das imagens de satélites, vamos perceber que as reservas indígenas demarcadas são as que estão mais preservadas na Amazônia, onde há menos destruição. Então, esse outro modelo socioambiental é de convivência. A floresta produz muito alimento e dá para viver harmoniosamente. Existe este conflito e a igreja, a partir da encíclica do Papa, a Laudato si, tem essa preocupação muito maior hoje com o meio ambiente. Nós não podemos destruir a casa comum. Destruindo a floresta, certamente não só a Amazônia será afetada, mas o clima do mundo. Aqui no Sudeste e no Sul, de onde vem a água? Recentemente se descobriu que além das águas profundas da Amazônia, e dos rios da Amazônia, existem os rios “voadores”. A umidade da Amazônia é trazida para o sul e sudeste e esta umidade chega até Bueno Aires. Se nós acabarmos com a floresta amazônica, aqui haverá uma diminuição significativa das águas… É necessário um cuidado com a Amazônia porque esse cuidado é um cuidado com o clima do mundo, é um cuidado com as gerações que virão depois de nós.

Expectativas em relação ao sínodo

Se no documento final do sínodo não houver nenhum avanço, só o fato da sua convocação, desta articulação da Amazônia que se formou em torno do sínodo, já é um ganho, já trouxe uma reflexão muito aprofundada. Eu sei que não vamos ficar só nisso. Nós vamos avançar muito mais. O Papa tem um carinho imenso pela Amazônia. Em 2016, quando eu fui fazer o curso dos novos bispos da Amazônia, quando fui cumprimentar o Papa, na minha frente estava um frade agostiniano, Dom Santiago. Ele se apresentou dizendo que era bispo da Amazônia. O Papa segurou na orelha dele e falou assim: não se esqueça do sínodo da Amazônia. O papa já sonhava com um sínodo. A Amazônia está no coração do papa.  Dom Cláudio Hummes disse que isso ficou mais forte no coração do Papa a partir do encontro de Aparecida (Assembleia Latino-americana de Aparecida) onde o Cardeal Bergoglio, na época, foi um dos principais redatores do Documento de Aparecida. Ele ouviu os bispos da Amazônia, não só brasileira mas também dos outros países, falando que a Igreja tem que ter um carinho especial pela evangelização na Amazônia. Parece que aquela semente ficou plantada no coração do Papa que, agora, convocou esse sínodo. Se você me pergunta o que que vai avançar em relação a evangelização, tenho certeza de que o Espírito Santo vai conduzir os bispos, os teólogos, os especialistas para achar esses novos caminhos. O Espírito Santo está agindo na vida da Igreja.”

 

 

Liliene Dante

 

Entrevista realizada na Cúria Diocesana- durante visita de Dom Evaristo à Diocese de Itabira-Coronel Fabriciano. O bispo retornou à Prelazia na terça-feira, 9/07.

Foto de capa: Arquivo pessoal de Dom Evaristo

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