Por Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Eclo 35,1-15. Trata-se da relação entre a oferta a Deus, como cumprimento da Lei judaica, e a injustiça praticada pelo oferente. Entre nós, o livro do Eclesiástico é pouco conhecido, mas, o seu modo de pensar, libertador e conservador, está no inconsciente coletivo.
Escrito em hebraico, por volta dos anos 190 a 180 a.E.C., e traduzido para o grego pelo neto de Jesus Ben Sirac, em 132 a.E.C., com o objetivo de instruir os judeus de fala grega que viviam no Egito, o livro do Eclesiástico foi muito popular entre os cristãos dos primeiros séculos, sobretudo na catequese e na liturgia. Ele não foi considerado inspirado, isto é, canônico, pelos fariseus reunidos no encontro de Jâmmia, entre os anos 95 a 105 E.C., no sul da Palestina, para definir a lista dos livros inspirados da Bíblia Judaica, os atuais 39 livros do Primeiro Testamento.
Jesus, Ben (filho de) Sirac, nome com o qual o livro é também conhecido na forma grega (Sirácida), viveu em Jerusalém na segunda metade do século III e primeira metade do século II a.E.C. Ele era conselheiro e embaixador dos governantes (Eclo 39,4), estudioso da Escritura Judaica, grande conhecedor do patrimônio histórico de Israel. Ben Sirac foi um escriba que uniu o amor da Sabedoria ao amor da Lei (Eclo 24). Ele fundou escola em Jerusalém para formar aristocratas a fim de assumirem altos cargos (Eclo 50,27). Sirácida é um manual prático de sabedoria, de filosofia de vida. São Cipriano (morto em 258 E.C.) o cunhou com o nome Eclesiástico para distingui-lo do seu uso na sinagoga. O substantivo Eclesiástico vem do latim e quer dizer referente à Igreja ou da Igreja.
Eclesiástico não foi considerado inspirado pelos judeus, dentre vários motivos, ressalto três importantes, a saber: primeiro, ter sido escrito em grego (os fariseus de Jâmmia não conheceram o original hebraico), a língua que, por ser a do opressor, não podia ser utilizada para escrever um livro inspirado; segundo, o menosprezo do livro pelo trabalho manual em favor do trabalho intelectual dos filósofos e sábios, considerado nobre; terceiro, a discriminação severa da mulher, vista como subordinada ao homem.
O contexto do livro do Eclesiástico é o da cultura grega da época, chamada de helenismo, implementada pelo rei da Grécia, Alexandre, o Grande, a partir do ano 333 a.E.C. O grande conquistador Alexandre morreu jovem, mas o seu modo de pensar fez cultura no Ocidente. Somos frutos do pensamento grego que se uniu ao romano. Fascinados pela cultura grega que valorizava o pensar e o corpo, os judeus que viviam fora de Israel precisavam de um manual de fé que destacasse os valores religiosos e morais da sabedoria tradicional de Israel, sua relação com a Lei de Moisés. O grande desafio para os judeus de Alexandria era continuar vivendo a fé judaica no contexto da cultura e do pensamento gregos, os quais eram diferentes da visão judaica. Outro contexto de que não podemos nos esquecer é o da Teologia da Retribuição. Os judeus pensavam que Deus retribui o bem com o bem e o mal com o mal. O provérbio conhecido ainda hoje: “Aqui se faz, aqui se paga!” representa bem essa forma de pensar. O livro da Sabedoria, superou essa visão, ao propor a vida eterna para justo injustiçado na terra.
Tendo compreendido o contexto do texto, podemos entender Eclo 35,1-15. Ele começa dizendo que quem guarda a Lei faz muitas ofertas, conforme ela prescreve. No entanto, a oferta tem que ser fruto de uma vida baseada na justiça. O escriba ensina que é sabedoria judaica o não chegar de mãos vazias diante de Deus (Ex 23,14-17,20; Dt 16,16), pois Ele recompensa sete vezes mais a oferta. Deus agrada dos sacrifícios dos justos, mas vê como afronta os sacrifícios dos injustos. Cada um devia oferecer conforme suas posses. Ben Sirac, no entanto, deixa claro que jamais é permitido comprar Deus com falsos presentes, ao realizar sacrifícios injustos. Deus não aceita oferta de bens adquiridos injustamente, fruto da exploração dos pobres, da viúva e do órfão (Eclo 35,15-17). Nesses casos, a sentença de Deus, que é também juiz, seria implacável.
O autor de Eclesiástico ensina aos jovens judeus aristocratas e a nós que Deus não aceita a oferta do injusto do rico, e que não fará prosperar os seus bens. Por outro lado, ele reforça a lógica do pensamento da Teologia da Retribuição, ou como é chamada em nossos dias, Teologia da Prosperidade. Eu dou a Deus e ele me retribui com outros favores e bens. Quem já não viu escrito em carros: “Foi Jesus que me deu!” Imagino um empobrecido, diante desse jargão, se perguntando: por que Deus não me dá também um carro?
Dias desses, me deparei com um programa televisivo, no qual um famoso pastor da Igreja Mundial do Reino de Deus, depois de simular um milagre, chama a central de oração. Pensei que era para pedir oração, mas não. Era pedir que o fiel enviasse dinheiro, via pix, para a sua igreja. Eu não seria desonesto se afirmasse que o mesmo acontece no meio católico. Que oferta é essa? Isso é um crime em nome da fé ingênua do nosso povo. Como profetizara Oseias contra os sacerdotes, “eles se alimentam dos pecados do meu povo e anseiam por sua falta” (Os 4,8). Contribuamos, sim, com o nosso dízimo para as igrejas que, acima de tudo, cuidam dos empobrecidos. Essa, sim, é a oferta que agrada a Deus. Cuidado, se a sua oferta é fruto de injustiça, não a faça! Não tente corromper Deus com seus presentes. Vá primeiro reconciliar com o seu irmão, com Deus, com a justiça. Paz e bem!
Fonte: Franciscanos
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ