Sangue de ódio e sangue de amor

O sangue do ódio

No dia 15 de fevereiro de 2015, a internet horrorizava os navegantes do ciberespaço com um vídeo acessável pelo YouTube. Mostrava a decapitação de uma dezena de homens, identificados como cristãos coptas egípcios (fiéis cristãos de uma das mais antigas igrejas ortodoxas), capturados na Líbia por um grupo jihadista do Estado islâmico.

Pouco depois, a revista eletrônica Dabiq, do mesmo Estado islâmico, dava publicidade a outras imagens, apresentando um grupo de 21 cristãos egípcios, na mesma posição que os anteriores: ajoelhados numa praia da Líbia, rente ao mar, com as mãos amarradas às costas, e com a roupa cor laranja dos prisioneiros do EI. Atrás deles viam-se os carrascos, mascarados e vestidos de preto, com armas de fogo e facas na mão, prontos para a degola massiva. Especialistas em leitura labial afirmam que vários dos condenados aguardavam o martírio pronunciando o nome de Jesus.

Os decapitados não eram militares, nem policiais, nem guerrilheiros. Eram cidadãos modestos, que trabalhavam na Líbia para ganhar o pão. Seu crime era professar a fé cristã.

O Papa Francisco declarou, profundamente comovido, que eram verdadeiros mártires, como o foram tantos outros – católicos, ortodoxos, protestantes – torturados e assassinados no Iraque, na Síria, no Paquistão, na Índia, na Nigéria (onde continuam os massacres coletivos perpetrados pelos fanáticos do grupo Boko-Haram) por serem fiéis a Jesus Cristo.

O Papa quis celebrar pessoalmente uma Missa por eles e por suas famílias. Já tinha comentado – como o haviam feito igualmente seus antecessores João Paulo II e Bento XVI – que, nos nossos dias, o número de mártires cristãos é muito superior à soma de todas as vítimas da “era dos mártires” da Roma imperial dos séculos I a IV.

A gravação citada no começo, dirigida aos “seguidores da Igreja hostil egípcia”, tinha o seguinte título: Mensagem assinada com sangue dirigida ao povo da cruz. É sabido que esses grupos radicais islâmicos têm o objetivo declarado de eliminar os cristãos da face da terra.
Eu − como estou certo que também vocês − sinto-me enormemente honrado por pertencer ao “povo da Cruz”, e repito com São Paulo: Quanto a mim, Deus me livre de gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (Gl 6,14). Demos graças a Deus por isso. E leiamos atentamente a história que reproduzo a seguir, que, sem dúvida, tornará mais ardente a nossa ação de graças.

O sangue do amor

Em 1996, na Argélia, sete monges trapistas franceses foram martirizados por uma facção radical islâmica. A história impressionante desses monges está muito bem narrada no excelente filme Deuses e homens (premiado em Cannes), a que vale muito a pena assistir.

Os monges faziam parte da comunidade contemplativa do mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, situado perto das montanhas do mesmo nome, na localidade de Tibhirine, perto da cidade de Medea. Dedicavam-se à oração e ao trabalho da terra e prestavam serviços humildes aos muçulmanos necessitados da região. Um dos monges, antes de entrar no mosteiro, já avançado em anos, era médico, e lá mesmo – num pequeno pronto-socorro – atendia a população dos arredores. Amavam aquele povo argelino simples, participavam de suas festas familiares, e eram benquistos por aqueles muçulmanos humildes e pacíficos.

Em 26 de março de 1996, depois de uma série de ameaças, sete monges foram sequestrados por um comando radical de terroristas islâmicos. Após diversas vicissitudes, no dia 21 de maio desse mesmo ano os sete – entre eles, o prior – foram degolados. Só em 30 de maio é que os seus restos mortais foram achados perto de Medea. Acharam-se os corpos, mas não mais as cabeças, cortadas segundo o bárbaro costume desses radicais.

Entre dezembro de 1993 e janeiro de 1994, o prior do mosteiro, padre Christian de Chergé – francês, argelino de nascença −, prevendo esses trágicos eventos, havia escrito um testamento espiritual, testemunhando nele o seu amor a Cristo e, por Ele, a todos os muçulmanos do país. Reproduzo alguns parágrafos:

«Se algum dia me acontecesse ser vítima do terrorismo, eu quereria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida estava entregue a Deus e a este país. Peço-lhes que rezem por mim.

»Como posso ser digno dessa oferenda [de dar a vida]? Eu desejaria, ao chegar esse momento da morte, ter um instante de lucidez tal, que me permitisse pedir o perdão de Deus e o dos meus irmãos os homens, e perdoar eu, ao mesmo tempo, de todo o coração, aos que me tiverem ferido.
»Se Deus o permitir, espero poder mergulhar o meu olhar no olhar do Pai, e contemplar assim, juntamente com Ele, os seus filhos do Islã tal como Ele os vê; que os possa ver iluminados pela glória de Cristo, fruto da sua Paixão, inundados pelo dom do Espírito… Por essa minha vida perdida, totalmente minha e totalmente deles, dou graças a Deus».

Finalmente, dirigindo-se ao seu futuro assassino, escrevia: «E a ti também, meu amigo do último instante, que não sabias o que estavas fazendo, também a ti dirijo esta ação de graças…, e peço a Deus que nos seja concedido reencontrar-nos no Céu, como “bons ladrões” felizes no Paraíso, se assim Deus, Pai nosso, teu e meu, o quiser. Amém!

Pe. Francisco Faus – doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma

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