“Ah! Se eu tivesse asas para voar! … Fugiria para longe” (Salmo 55,6-8). “Vamos quebrar suas correntes [de Deus] e libertar-nos da sua opressão” (Salmo 2, 3)
Pode-se afirmar que também tentações, desculpas e autossuficiência possuem asas – asas de morcego – para fugir da luz de Deus e esquivar o bem.
Sobre essas asas de morcego vamos meditar agora um pouco, fixando a atenção apenas em dois pontos.
- Fugir da Cruz de Cristo. Já contemplamos a figura de são Pedro, fraco, que morria de medo de que descobrissem que era discípulo de Cristo, e assim não foi capaz de fugir da tentação.
Ora, antes disso, deu-se um episódio que nos permite enxergar as raízes mais profundas dessa fraqueza.
Conta o Evangelho que, depois de Pedro ter feito, inspirado por Deus, uma magnífica profissão de fé na messianidade de Cristo – tu és o Cristo, o filho do Deus vivo! –, Jesus começou a anunciar a sua próxima paixão e morte. A partir de então, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia (Mt 16,16 e 21).
Pedro, sempre impulsivo, cheio de carinho por Jesus, não se conteve e, tomando-o à parte, começou a repreendê-lo dizendo: Deus não o permita, Senhor! Isso não te acontecerá!.
A reação de Cristo parece exagerada: Vai para trás de mim, Satanás! Tu estás sendo para mim uma pedra de tropeço, pois não tens em mente as coisas de Deus, e sim as dos homens (Mt 16,16 e 21-23).
Jesus sabe que, na Cruz, ele vai expiar os nossos pecados e alcançar-nos a eterna salvação. Fugir da Cruz, para ele, seria desertar da sua missão redentora (coisa que interessava muito a Satanás).
Jesus, que nos ama, tem plena consciência de que veio ao mundo para servir e dar a vida em resgate por muitos (Mt 20,28). Justamente por ter sentimentos humanos, estremece no Horto ao pensar nos horrores da Cruz (Mc 14,33-34), mas, apesar disso, quer a Cruz com toda a alma e a abraça, porque arde em desejos de nos salvar: Ninguém me tira a vida, mas eu a dou por própria vontade (Jo 10,18). Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo 15,13).
Cruz e amor, na vida de Cristo, e na do cristão, são inseparáveis. Quem é que acompanhou Jesus até a Paixão e a Cruz? Só aqueles que mais o amavam: sua Mãe, Maria; são João, o discípulo amado; Maria Madalena, a pecadora libertada de sete demônios. Todos eles sabem, ou pelo menos intuem, que da Cruz virão para o mundo todas as bênçãos e graças.
Quem compreende esse mistério, que só a fé e o amor podem iluminar, exclama como são Paulo: Estou pregado na cruz com Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim (Gl 2,20).
Basta captar um lampejo do mistério da Cruz – precisamente o que Pedro não foi capaz de ver –, para mudarmos de atitude ante o sofrimento e o sacrifício. Percebemos então que, se abraçarmos a cruz em união com Cristo, acharemos o amor verdadeiro e colaboraremos com o Redentor para implantar, em todos os âmbitos da vida, o Reino do seu Amor (cf. Cl 1,13)[1].
- Fugir da vocação. Talvez você se lembre da história de um homem jovem, que – empolgado pela figura e a palavra de Cristo – correu afobadamente atrás de Jesus, lançou-se-lhe aos pés e disse: Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna? Jesus respondeu: Conheces os mandamentos. E citou vários dos dez mandamentos da Lei de Deus. Mestre – retrucou o moço –, tudo isso eu tenho observado desde a minha adolescência. Jesus, então, fixou os olhos nele com amor, e o chamou para uma vocação de entrega total, como homem de confiança de Deus, como apóstolo: Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!
É a história de uma vocação maravilhosa, que começou tão bem… e terminou tão mal: Ao ouvir isso, ele, pesaroso, foi embora cheio de tristeza, pois possuía muitos bens (Mc 10,17-22).
A figura do rapaz que recusa o chamado de Cristo perde-se, de ombros caídos e cabeça baixa, como uma sombra que se vai diluindo à medida que se afasta. Nunca mais no Evangelho se fala dele. Fugiria para longe! Só resta dele uma imagem de tristeza.
Como diria nosso Senhor de alguns dos fariseus e escribas: Frustraram o desígnio de Deus a seu respeito (Lc 7,30). E isso é triste.
Não duvidemos. A plena realização humana e cristã de cada um de nós consiste na fidelidade generosa e perseverante à vocação que Deus nos dá: procurar Deus e servir o próximo no celibato, no matrimônio, no sacerdócio, em todas as profissões e tarefas honestas desta terra…, assumindo a missão que, nessa vocação, o Senhor nos dá.
Todos temos vocação divina, todos recebemos uma chamada divina para a plenitude do amor, para a santidade.
Numa anotação de 1938, são Josemaria Escrivá afirmava: «Tens obrigação de santificar-te. − Tu também. − Alguém pensa, por acaso, que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos? − A todos, sem exceção, disse o Senhor: “Sede perfeitos, como meu Pai Celestial é perfeito”»[2].
Com grande vibração, repisava essa mesma doutrina na cidade de São Paulo, no dia 1º de junho de 1974. Respondendo à pergunta de um engenheiro, dizia: «O Senhor pede a todos nós – a você a e a mim também – que sejamos santos: “sede santos como é santo meu Pai celestial.” E isso não o diz somente aos que vestimos estas coisas (apontava para sua batina). Diz a todos. Aos casados, às casadas, aos solteiros, aos operários, aos intelectuais, aos trabalhadores rurais… A todos!»[3].
É uma doutrina cativante, que a Igreja assumiu e proclamou vigorosamente em 1964, no documento central do Concílio Vaticano II[4], e que recentemente o Papa Francisco quis lembrar de novo na Exortação apostólica Gaudete et exsultate, de 19 de março de 2018.
Convençamo-nos de que a fidelidade às exigências divinas da nossa vocação – exigências de Amor a Deus e ao próximo – é o caminho que nos levará à santidade e à alegria. Certamente, recusas como a do jovem rico podem vir a ser sanadas pela misericórdia infinita de Deus. Mas, como no caso dos infartados, sempre ficará uma cicatriz no fundo do coração. Mesmo assim, nosso Senhor não deixará de chamar-nos à santidade, por outras vias, e de nos oferecer a graça necessária.
Fonte: Padre Francisco Faus
[1] Sobre a cruz na vida do cristão, pode ajudar ler o livro de F. F. A sabedoria da Cruz, Ed. Quadrante, São Paulo 2001
[2] Caminho, n. 291
[3] F.F. São Josemaria Escrivá no Brasil, 3ª edição. Ed. Quadrante, 2017
[4] Constituição dogmática Lumen gentium, de 21/11/1964, Capítulo V