No coração do magistério de Ratzinger há o rosto de uma Igreja que não busca poder, sucesso e grandes números. E a chave da “nova evangelização”.
Bento XVI morreu emérito e foi sepultado como pontífice. Um oceano de orações acompanhou o rito fúnebre presidido pelo Papa Francisco no adro da Basílica de São Pedro.
Orações de gratidão elevadas de todo o mundo, na certeza de que Joseph Ratzinger pode finalmente desfrutar da face daquele Senhor que amou e seguiu ao longo de sua vida, e a quem se dirigiu com suas últimas palavras antes de entrar em agonia: “ Senhor, eu te amo!”.
Há um traço distintivo que une Bento XVI ao seu sucessor e podemos encontrá-lo nas palavras que, até a sua primeira mensagem Urbi et orbi, na manhã do dia seguinte à eleição, o Papa Ratzinger disse: “Ao empreender o seu ministério o novo Papa sabe que a sua tarefa é fazer resplandecer aos olhos dos homens e das mulheres de hoje a luz de Cristo: não a sua, mas a verdadeira luz do próprio Cristo.” Não a própria luz, o próprio protagonismo, as próprias ideias, os próprios gostos, mas a luz de Cristo. Porque, como disse Bento XVI, “a Igreja não é a Igreja nossa, mas a sua Igreja, a Igreja de Deus.
O servo deve prestar contas de como administrou o bem que lhe foi confiado. Não prendamos os homens a nós, não busquemos poder, prestígio, estima para nós mesmos”. É interessante notar como já como cardeal, durante anos, Ratzinger advertiu a Igreja sobre uma patologia que a afligiu e ainda a aflige: a da confiança nas estruturas, na organização. Aquela de querer “contar” no cenário do mundo para ser “relevante”.
Em maio de 2010, em Fátima, Bento XVI disse aos bispos portugueses: “Quando no sentir de muitos a fé católica deixa de ser património comum da sociedade e, frequentemente, se vê como uma semente insidiada e ofuscada por «divindades» e senhores deste mundo, muito dificilmente aquela poderá tocar os corações graças a simples discursos ou apelos morais e menos ainda a genéricos apelos aos valores cristãos.” Porque “a mera enunciação da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho d’Ele.”
Não são os discursos, os grandes raciocínios ou vibrantes referências a valores morais que tocam o coração das mulheres e homens de hoje. Não servem as estratégias de marketing religioso e proselitista para a missão. A Igreja de hoje também não pode pensar em viver na nostalgia da relevância e do poder que teve no passado. Muito pelo contrário: tanto Bento XVI como o seu sucessor Francisco pregaram e testemunharam a importância de voltar ao essencial, a uma Igreja rica apenas da luz que recebe gratuitamente do seu Senhor.
E precisamente este retorno ao essencial é a chave para a missão. Joseph Ratzinger o havia dito quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, durante uma catequese em dezembro de 2000, citada nestes dias pelo diretor da Fides Gianni Valente. Ratzinger partiu da parábola evangélica do Reino de Deus, comparado por Jesus ao grão de mostarda, que “é a menor de todas as sementes, mas, quando cresce, é maior que as outras plantas do jardim e se torna uma árvore” . Explicou que para falar da “nova evangelização” nas sociedades secularizadas é necessário evitar “a tentação da impaciência, a tentação de buscar imediatamente grandes sucessos, de buscar grandes números”. Porque este “não é o método de Deus”. A nova evangelização, acrescentou, «não pode significar: atrair imediatamente as grandes massas que se distanciaram da Igreja com métodos novos e mais refinados». A própria história da Igreja, observava ainda o cardeal Ratzinger, ensina que “as grandes coisas sempre começam com o pequeno grão e os movimentos de massa são sempre efêmeros”. Porque Deus “não conta com os grandes números; o poder exterior não é o sinal de sua presença. Grande parte das parábolas de Jesus indica esta estrutura do agir divino e responde assim às preocupações dos discípulos, que esperavam muito mais sucessos e sinais do Messias – sucessos do tipo oferecido por Satanás ao Senhor”. Os cristãos, recordava ainda o futuro Bento XVI, “eram pequenas comunidades dispersas pelo mundo, insignificantes segundo os critérios mundanos. Na realidade, foram o germe que penetrava na massa por dentro e levava dentro de si o futuro do mundo”. Portanto, não se trata de “ampliar os espaços” da Igreja no mundo: “Não buscamos escuta para nós mesmos, não queremos aumentar o poder e a extensão de nossas instituições, mas queremos servir ao bem das pessoas e da humanidade dando espaço Àquele que é a Vida. Esta expropriação de si mesmo, oferecendo-o a Cristo pela salvação dos homens, é a condição fundamental de um verdadeiro compromisso com o Evangelho”.
É esta consciência que acompanhou por sua longa existência o cristão, o teólogo, o bispo e o Papa Bento XVI. Uma consciência que ecoa numa citação que o seu sucessor – a quem sempre garantiu “reverência e obediência” – quis incluir na homilia do funeral. É extraída da “Regra Pastoral” de São Gregório Magno: «No meio das tempestades da minha vida, conforta-me a confiança de que tu manter-me-ás à superfície sobre a tábua das tuas orações e, se o peso das minhas culpas me abater e humilhar, emprestar-me-ás a ajuda dos teus méritos para me elevar». “É a consciência do Pastor – comentou o Papa Francisco – aquilo que, na realidade, nunca poderia sustentar sozinho e, por isso, sabe abandonar-se à oração e ao cuidado do povo que lhe está confiado. Porque sem Ele, sem o Senhor, nada podemos fazer.
ANDREA TORNIELLI
Imagem: reprodução / Santa Missa de Exéquias do Sumo Pontífice emérito Bento XVI (Vatican Media)