No L’Osservatore Romano o cardeal José Tolentino de Mendonça, arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, investiga os profundos significados da já icônica oração do Papa no início da pandemia, em 27 de março de 2020: em um tempo de distância Francisco teve a grande sabedoria de abraçar o vazio em vez de repudiá-lo.
Por José Tolentino de Mendonça
É bem sabido que vivemos na era da massificação das imagens. Em nenhuma época precedente da história foram produzidas tantas imagens, e além disso nenhuma outra, como a nossa, testemunhou sua radical banalização. Em vez de imagens únicas e autênticas, temos produtos produzidos em série, selfie fabricados em um instante e prontos para serem devorados pelo esquecimento. O filósofo Walter Benjamin falou corretamente da “perda da aura”, o que significa que a imagem deixa de constituir “a aparição única de uma coisa distante” e se fixa na repetição sonâmbula de um déjà vu. É por isso que o consenso comovido em torno da imagem do Papa Francisco em uma Praça São Pedro vazia é algo que faz pensar, fora e dentro do espaço eclesiástico.
Um ano depois, vale a pena revisitar essa imagem, que na realidade nunca deixou de estar presente, e nos perguntarmos de onde vem seu excepcional poder icônico. Por que aquela imagem permaneceu a representar o que estamos ainda vivenciando e não qualquer outra? E o que nos revela sobre si mesmo ou nos ensina sobre nós mesmos? Tentando resumir o que certamente mereceria uma reflexão mais ampla, eu indicaria quatro razões.
A audácia de habitar a vulnerabilidade como um lugar de experiência humana e de crente. É verdade que a cultura dominante, o mainstream modelado como um automatismo por nossas sociedades de consumo, fez da vulnerabilidade uma espécie de tabu. A fragilidade está sujeita à ocultação.
A audácia de abraçar e dar novamente significado ao vazio. Uma das experiências mais impactantes do confinamento foi, no início da pandemia, testemunhar o esvaziamento das cidades. De um momento para o outro, houve um estranho e desconhecido silêncio. Incrédulos, olhamos pelas janelas para as ruas e praças em absoluta solidão, sentindo-nos como se tivéssemos sido despojados do mundo. Nossa primeira reação foi a de ler o vazio como algo hostil que nos ameaçava.
A audácia de encontrar uma metáfora. Comentando o texto evangélico de Mc 4,35-41, o Papa Francisco fez um gesto de grande alcance: reorientou a percepção com respeito à pandemia. Os primeiros chefes de Estado a falar haviam se referido à pandemia como uma guerra, uma metáfora compreensível até certo ponto, mas muito equívoca e com tantos perigos à espreita. O Papa foi o primeiro a falar sobre isso como uma tempestade. Esta passagem do plano estreito e beligerante para o plano cosmológico coincidiu com uma ampliação da visão.
A audácia de rezar a Deus no silêncio de Deus. As tempestades são experiências de crise mesmo para os crentes. Há um escândalo implícito no grito dos discípulos que tentam despertar Jesus: ” “Mestre, não te importas que morramos?” (Mc 4:38). Como o Papa explica, esta “é uma frase que fere e desencadeia tempestades no coração”. Diante da disseminação do mal e de sua proximidade traumática, sentimos com sofrimento o que parece ser o silêncio incompreensível de Deus.
Padre Lucio Adrian Ruiz
O Papa terminou há pouco uma de suas audiências da quarta-feira.
Recolhe-se em silêncio e olha as imagens de 27 de março revivendo o que aconteceu naquela sexta-feira da Quaresma. Recordar as etapas da Statio Orbis celebrada na Praça de São Pedro vazia, na chuva, com as orações interrompidas pelo som das sirenes, para ele é uma experiência que vai além da simples recordação. Em seu rosto, reaparece a atitude de oração.
Perguntamos-lhe o que sentiu ao caminhar em silêncio até o adro da Basílica:
«Caminhava assim, sozinho, pensando na solidão de tantas pessoas…
um pensamento inclusivo, um pensamento com a cabeça e com o coração, juntos…
Sentia tudo isso e caminhava…».
O mundo olhava para o Bispo de Roma, e rezava com ele, em silêncio.
Olhava para o Papa como intercessor entre Deus e nós, seu povo. E a Francisco, perguntamos,
o que disse a Deus naqueles momentos:
«Tu conheces isso, já em 1500 resolveste uma situação como essa, “meté mano”. (1)
Esta expressão “meté mano” é muito minha. Muitas vezes em oração eu digo:
“Põe tua mão nisso, por favor!”».
(1) “Meté mano”, em espanhol: expressão coloquial, informal e familiar, muito usada na Argentina, especialmente em Buenos Aires.
Os olhos do Papa detêm-se na Praça São Pedro vazia.
Perguntamos o que pensava naquele momento, o que pensava sobre o povo e o sofrimento de tantas pessoas:
«Duas coisas me vieram à mente: a praça vazia, as pessoas unidas à distância,
… e deste lado, o barco dos migrantes, aquele monumento…
E estamos todos no barco, e neste barco não sabemos quantos poderão desembarcar… Todo um drama diante do barco, a peste, a solidão… em silêncio…».
O barco é mencionado no Evangelho de Marcos que foi lido naquela noite. E está presente na Praça, representado no monumento que recorda os migrantes. É por isso que de vez em quando, o olhar do Bispo de Roma dirigia-se para a colunata direita, para aquele monumento difícil de distinguir na escuridão.
«O barco!…», repete quase sussurrando o Papa.
Perguntamos em quem ele pensava em particular naqueles momentos, quem considerava mais necessitado,
quem confiava ao Senhor em oração. Responde mais uma vez em voz baixa:
«Tudo estava unido: o povo, o barco e a dor de todos…».
O que sustentou o Papa?
O que lhe deu força e esperança naquele momento tão intenso e dramático?
Francisco permanece em silêncio por alguns momentos, olhando para esta foto:
«Beijar os pés do Crucificado sempre dá esperança.
Ele sabe o que significa caminhar, e sabe o que é a quarentena porque foram-lhe colocados dois pregos ali para mantê-lo firme. Os pés de Jesus são uma bússola na vida das pessoas, quando caminham e quando estão paradas. Os pés do Senhor me tocam muito…».
As imagens fluem lentamente.
Eis a que o mostra usando vestes litúrgicas no adro da Basílica. No chão há uma grande inscrição, 11 de outubro de 1962. Chamamos sua atenção para a data. Exclama imediatamente:
«Era o início do Concílio!».
Acrescentamos à lembrança a citação do famoso “Discurso à Lua” de João XXIII que apareceu inesperadamente da janela de seu escritório para abençoar a grande multidão de fiéis que seguravam suas velas e disse: “Levem a carícia do Papa aos seus filhos”. (2)
Francisco escuta em silêncio…
«Naquele momento não tinha notado…».
É uma coincidência… quase como se quisesse dizer que uma nova carícia do Papa deve ser levada para casa, em todas as casas, no sofrimento e na solidão das famílias isoladas, nos corredores dos hospitais onde os doentes escalavam seu Calvário sem a proximidade e o conforto de seus entes queridos.
«Sim, sim…».
(2) “Voltando para casa vocês encontrarão as crianças. Deem a elas um carinho e digam: «Este é o carinho do Papa». Talvez as encontreis com alguma lágrima por enxugar. Tende uma palavra de consolo: o Papa está conosco especialmente nas horas de tristeza e amargura”. (São João XXIII)
Pedimos para retomar o fluxo de lembranças,
para refletir sobre aqueles momentos diante das imagens que os retratam.
«Eu estava em oração diante do Senhor…ali…
Uma oração de intercessão diante de Deus…».
Impressiona a ausência de pessoas na praça desoladamente vazia.
Tão diferente de todas as outras vezes, de todas as outras celebrações. Mas o Papa percebia a presença dos fiéis, dos crentes e dos não-crentes? Sentia que naquele momento muitas pessoas estavam conectadas ao Sucessor de Pedro e entre eles através da mídia?
«Eu estava em contato com as pessoas. Não estava sozinho em nenhum momento…».
Mas sobre a Praça vazia, acrescenta:
«… era muito impressionante».
A Statio Orbis tão despida, desprovida de tudo.
Desprovida da participação do povo de Deus. Mas com algumas presenças significativas.
Perguntamos-lhe como a vivenciou:
«Bem. A Virgem estava lá…
Eu que pedi que a Virgem estivesse lá, a Salus Populi romani, queria que estivesse lá…
E o Cristo… o Cristo Milagroso…».
Foi dito e escrito que o evento de 27 de março está destinado a permanecer na história e na memória de todos.
O Papa fecha o livro de recordações e conclui:
«Eu não sei…
Foi uma coisa original.
Tudo começou com um pobre capelão de uma prisão…».