Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte/MG e presidente da CNBB
Clássico, consagrado e bem atual é o que expressa o imortal Rui Barbosa, ao referir-se sobre o triunfo das nulidades e o crescimento das injustiças. Ante essa constatação, a cidadania é interpelada a não abrir mão de virtudes, a superar a desconsideração da honra e a eleger como prioridade a honestidade. Aí está o exigente programa, em cada etapa da história e em todos os momentos da (re)construção da sociedade, buscando edificar “um mundo aberto”, isto é, sem fechamentos que comprometem o humanismo integral. A grande mudança civilizatória em curso não permite relativizações ou soluções que podem parecer fáceis, mas conduzem a fracassos que são consequências de escolhas equivocadas, de respostas que contemplam parte dos anseios de uma parcela da população, em um contexto que exige mais compromisso com a solidariedade universal.
Essenciais são valores e princípios iluminadores, a exemplo daqueles que integram a doutrina cristã, com propriedades para configurar respostas adequadas a este tempo. Por isso mesmo, o desafio partilhado por todos inclui o adequado exercício da cidadania, alicerçando-o sobre valores e princípios insubstituíveis. Esse desafio pede o reconhecimento das consequências de “um mundo fechado”, para que sejam geradas mudanças. Adverte o Papa Francisco: as sombras de “um mundo fechado” trazem o risco de prejuízos pesados. Isso se comprova quando são observadas as guerras que mancham a história da humanidade. Mesmo diante de tantos sofrimentos registrados no passado, os conflitos permanecem, com focos de guerra mundo afora. Os anseios por integração não têm alcançado seus bons propósitos, que são necessários e urgentes. Ao invés disso, sinais apontam para um processo de regressão da humanidade, indicando ser essencial investir no cultivo de envergadura humana, moral e política para inspirar recomeços cidadãos.
O atual contexto pede mais inteligência e generosidade solidária da civilização contemporânea, para que sejam efetivadas mudanças alicerçadas no bem, no amor, na justiça e na paz. Trata-se de um processo exigente, que inclui consciência individual e coletiva, na construção de um caminho que efetivamente seja recomeço cidadão. Oportuno lembrar que a grave crise sanitária enfrentada por todo o mundo vem produzindo grandes perdas, a morte de muitas pessoas, trazendo no seu reverso uma série de lições que precisam ser aprendidas, a exemplo da adoção de um novo estilo de vida e de novas dinâmicas. Mas, infelizmente, o que se verifica é a pouca disponibilidade para mudar, conforme revelam certas ações que ignoram a inadiável necessidade de se respeitar o meio ambiente. Privilegia-se a lógica do lucro, que cega, fazendo tantos acreditarem que o dinheiro rápido na mão é o que mais vale, sem considerar que logo virão as perdas arrasadoras, a exemplo da escassez de água potável.
Neste tempo de grandes possibilidades ainda se convive com a discriminação crescente, desconsiderando a fraternidade, endurecendo corações, incapacitando-os para vencer situações de injustiça. O antídoto para esses males é recuperar o sentido de família, reconhecendo-se parte de um grupo marcado por laços sanguíneos, mas também integrante de um conjunto maior, a família humana. Importam os recomeços cidadãos para dissipar as sombras de “um mundo fechado”.
É preciso vencer o desânimo, conforme alimenta e alicerça a esperança cristã. O Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti, adverte, de modo simples e muito assertivo, a respeito deste tempo, apresentando três perigosos verbos: exasperar, exacerbar e polarizar. As atitudes conceituadas por esses três verbos obscurecem a sociedade e o horizonte urgente que inspira recomeços cidadãos. Pertinente e sempre interpeladora é a interrogação do Papa: “Nesta luta de interesses que nos coloca todos contra todos, onde vencer se torna sinônimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar do lado de quem está caído na estrada?”
O que se verifica é um conjunto de consequências desastrosas, capazes de enfraquecer até mesmo o sentido de família, afrontando seus valores e princípios intocáveis. Debelam também os sentimentos de solidariedade, desprezando a disposição para o diálogo e a capacidade para reconhecer a nobreza da dignidade humana de cada pessoa. Dentre essas situações graves que causam um verdadeiro terremoto social está a política que deixa de ser debate saudável, buscando o desenvolvimento de todos e o bem comum. Essa política, conforme bem sublinha o Papa Francisco, limita-se a receitas efêmeras de marketing, cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. É preciso reagir evocando um sentimento amplo e irrestrito para emoldurar a cidadania e iluminar a consciência coletiva pela luz da humildade, pelo mecanismo do diálogo e pelo sentido imprescindível de solidariedade. Todos, tecendo riquezas a partir das muitas diferenças, são convocados a contribuir: com a força do respeito, é hora de importantes recomeços cidadãos.
Fonte: CNBB Leste 2