Ratzinger jamais seria um “ratzingeriano”

Papa emérito Bento XVI - Vatican Media / Vatican News

Por Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp.

 

Passados alguns dias da morte de Bento XVI, sinto-me motivado a tecer algumas considerações que me parecem oportunas. Em 2006 quando iniciei os estudos de Filosofia, meu formador nos sugeriu ler e discutir em comunidade a primeira encíclica do papa alemão, Deus caritas est. Como eu estava mergulhado nos diálogos de Platão, a primeira parte da encíclica foi uma síntese de toda aquela filosofia, mas com um grande diferencial: não se tratava de um texto de simples metafísica, mas era sobretudo um compêndio da vida cristã baseado na espiritualidade que nos põe em relação com uma Pessoa: Jesus Cristo. Depois daquela experiência, nunca deixei de ler e apreciar as páginas do professor, teólogo, pastor e papa J. Ratzinger.

Qual foi na verdade o ponto de relevância da teologia de Ratzinger que me convenceu de acompanhá-lo? A sua teologia dialógica, jamais apologética. Já na primeira encíclica ele une o amor humano (Eros) sempre tido por impuro, com aquela outra forma de amor que nos foi dada na Revelação (Ágape). Era motivante adentrar na maneira inteligente por meio da qual o papa articula a união das duas formas de amor. Indo mais em profundo, ele trazia para todo o mundo a seguinte conclusão-novidade: Deus também sente um Eros por sua criatura a ponto de vir ao seu encontro e fazer-se dom por ela. Como pode ser possível um Deus erótico? Sim, em Jesus de Nazaré há também esta forma de amor, mas com uma diferença que Nietzsche, com quem Ratzinger dialoga na primeira parte de sua encíclica, nunca se deu conta: a Cruz de Jesus cura o nosso Eros de seu egoísmo, fazendo-o ver o próximo com admiração e caridade. Fantástico!

Assim começou meu encanto por essa teologia. Mas há ainda outro detalhe. Em sua última encíclica (assinada por Papa Francisco), Bento XVI ia mais em profundo com sua teologia dialógica: A fé nos abre a uma transcendência não abstrata e vazia, mas nos eleva a um Tu (citando Martin Buber) que dá todo o sentido de nossa vida. Quando se descobre esse sentido passamos a viver para um outro tu: o meu próximo ferido e necessitado. Essa é a beleza da luz da fé (Lumen Fidei): o encontro com um Tu (Deus) que me joga diante de um outro tu (meu próximo). E é só assim que a fé cresce e confere um sentido global a minha existência.

Quando li a autobiografia do então cardeal Ratzinger e algumas de suas entrevistas, dei-me conta que ele desejava unicamente ser um professor de Teologia fundamental e transcorrer seus dias na tranquila Alemanha ao lado de seus estudantes. Mas não foi isso que a vida lhe reservou. Deus pediu mais dele, chamando-o a confirmar os irmãos na fé, como o apóstolo Pedro. Uma vez papa, ele buscou ensinar as melhores lições que aprendeu dos seus dois grandes mestres: Agostinho de Hipona e São Boaventura. De Agostinho aprendeu a incluir o eu (por isso todo discurso sobre Deus implica necessariamente o homem), ou seja, os dramas da vida no relato teológico. Já do autor do Itinerarium mentis in Deum deixou-se interpelar mais pela escola do amor que põe em discussão o conceito de relação com o divino. Para Ratzinger, isto era fundamental, visto que Deus não pode ser interpretado a partir de uma razão simplesmente abstrata e calculista. E assim foi o seu pontificado marcado por encontros, ternura, escuta e, além de tudo: anúncio da verdade em um mundo tomado por um relativismo que quer abarcar tudo, mas sem nenhuma relação e compromisso com um rosto concreto. Este foi Bento XVI!

Em meu ministério de formador de candidatos à vida consagrada, confesso que algumas vezes me assustei com as ideias e o estilo exterior de alguns jovens que chegavam às nossas comunidades. Já na etapa do propedêutico, alguns vestiam batina preta e já traziam consigo estolas e casulas de todos os modelos. Questionando o porquê de tanto excesso, recebi a resposta: “é devido o papa Bento XVI”. Chocado, disse para mim mesmo: “meu Deus onde eles encontraram isso na teologia do papa emérito?” Outras manifestações do gênero vinham sempre justificadas mediante a frase: “fazemos assim porque somos ratzingerianos!” O fundamentalismo e o clericalismo constituem uma exegese equivocada, uma interpretação selvagem e um literalismo sem espírito que acabam por trair a vida e a obra de Joseph Ratzinger.

Geralmente, os fetiches que nascem em torno da má interpretação do legado do papa alemão são evidenciados no campo da liturgia, expressos num profundo formalismo e rubricismo infértil. Todavia, não é isso que se verifica nas páginas da Introdução ao espírito da liturgia, nem tão pouco no volume XI da sua Opera Omnia nas quais Ratzinger nunca deixa de citar seu mestre Romano Guardini. Liturgia é o primado de Deus na vida das almas. É a verdadeira elevação do espírito humano em direção ao seu criador, mas é também encontro com a comunidade que se reúne para adorar e nutrir-se da eucaristia que nos faz discípulos no amor e na verdade. Pena que os chamados “ratzingerianos” fazem da dimensão mais sublime um instrumento apologético para exprimir os próprios gostos pessoais, deixando de lado a primazia da pessoa de Jesus Cristo no mistério eucarístico.

Fonte: Franciscanos


Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp, é missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente, faz o doutorado em Teologia Fundamental nesta Universidade.

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