Que os números da morte vivam e gritem perturbadoramente

Artigo publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos

 

“A ignorância atropela os fascistas. O Brasil na zona de risco vermelha ficará isolado. Visto por pesquisadores internacionais como ‘celeiro de variantes’, e retardatário complicado na diplomacia mundial que rege as ações e as cotações em torno do destino dos imunizantes, o país permanece no mesmo ritmo”, escreve Ivânia Vieira,  jornalista, doutora em Processos Socioculturais na Amazônia e professora na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Eis o artigo.

Os dias brasileiros seguem batendo recordes de contaminação e morte por consequência da Covid-19. A guilhotina da falta de oxigênio e de leitos nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) se mantém armada sobre os pescoços de milhares nas cidades do Brasil, em poucos segundos entre mil ou mais serão atingidos e, mortos, tornar-se-ão parte da Estatística de Óbitos provocados pelo novo coronavírus.

Os números são robustos. Logo somarão 300 mil mortes podendo alcançar, em maio, 400 mil, alertam pesquisadores da área da saúde. De visibilidade supostamente menos impactante, outros números acompanham a tragédia nacional concebida por um modelo de ação política preferencialmente necrófila. São os da agonia de parentes e amigos em perambulação nas portas dos hospitais e os da dor da morte de entes queridos.

Na balança dos negócios pandêmicos da atualidade, a quantidade numérica dos doentes, dos mortos e dos adoecidos n’alma tem lugar certo nas bandejas cujas cordas que as movimentam estão sendo, principalmente, acionadas a partir de estudos da audiência político-econômica e eleitoral. Somos joguetes. A ideia de nação está soterrada. Salvem a economia! “Muitos morrerão e daí?” É preciso gastar mais, comprar mais, consumir mais, lotar as lojas, os shoppings, os bares, as praias…É preciso ir às ruas em verde-amarelo asfixiante e dizer não às medidas restritivas, à flexibilização contida. E morrer a caminho do hospital ou na fila de espera por vaga na UTI.

Nos artigos “Condorcet levou matemática à justiça e às eleições” e “A matemática a serviço da democracia”, publicados no jornal Folha de S.Paulo, respectivamente em 12 e 19 de setembro de 2018, o Prof. Marcelo Viana, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, nos ensina a pensar sobre a importância dos números e os caminhos que podem nos levar a trilhar. O governo do Brasil utiliza a estatística para fazer o povo sangrar, arrasta os corpos sem vida ao limite ainda não testado e, municiado por outros números, escancara os dentes diante do engordamento da popularidade projetada a partir do pagamento do novo auxílio emergencial.

Na cidade, seja ManausSão Paulo ou Curitiba, o drama continua. Gente com o coração aflito, grita com os olhos e no esticar das mãos em suplica pela vida. A bandeira da insensatez é erguida, enrolada, arrolada na trama do neonacionalismo e, neste, os números têm outra função, a de fazer valer, pela narrativa coercitiva, aquilo de fato importante à extrema-direita e a neoconservadores.

mercado voraz como senhor de todas as coisas, de todas as vidas, determinando a subserviência aos interesses estadunidenses, condenando os ativismos por direitos e autonomia levados adiante por trabalhadores, o povo preto, os indígenas, os coletivos LGBTQI+, os movimentos feministas e ecofeministas e as juventudes, tratados como expressão da “força do mal”, destruidores da moral e dos bons costumes de um determinado ideal de família. A ação neopentecostal e a militarista combinam nesse arranjo o desastre real a que estamos submetidos. E explicam o porquê de o Brasil ter vacinado menos de 5% da população e ser empurrado para a zona vermelha do mundo.

O governo do país tripudiou da “diplomacia da vacina”. Sob aplausos ao atraso cúmplice da morte criou fictícia fila da vacina. Sem vacina. Multidões de idosos de 80, 85 anos, foram submetidos a filas gigantescas e horas de espera até saber que não teriam como se vacinar. Igual situação ocorreu com pessoas entre 60 a 79 anos. Nesses episódios, o governo federal, responsável, constitucionalmente, pela tarefa de coordenar, via Ministério da Saúde, o plano de enfrentamento à Covid-19 e o da vacinação, se desloca e afasta-se da responsabilidade culpabilizando governadores e prefeitos, alguns dos quais aliados dele.

A ignorância atropela os fascistas. O Brasil na zona de risco vermelha ficará isolado. Visto por pesquisadores internacionais como “celeiro de variantes”, e retardatário complicado na diplomacia mundial que rege as ações e as cotações em torno do destino dos imunizantes, o país permanece no mesmo ritmo: troca ministros da saúde para salvaguardar a política genocida do presidente brasileiro. Mais de 200 milhões de pessoas à espera de vacinação enquanto o vírus mutante age.

Se o barulho das sirenes de ambulâncias e dos carros funerários nos enlouquecem hoje, que os números da morte agenciada em 2020 e 2021 vivam, sejam impressos nos corpos e gritem perturbadoramente nos arranjos eleitorais de 2022. Cada número tem um nome, uma história de vida.

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