Não é raro que alguns cristãos se lamentem das “muitas cruzes” que – segundo eles – Deus lhes envia.
Mas, antes de meditarmos nas cruzes que talvez Deus nos envie para o nosso bem, nos convém pensar nas “falsas cruzes” que nós mesmos “fabricamos”, e que nunca deveriam ter existido: cruzes absurdas, que Deus não nos mandou nem quer mandar. Essas cruzes é que nos fazem mal.
De que cruzes se trata? Daquelas que aparecem só como consequência da nossa mesquinhez e dos nossos defeitos. A pessoa egoísta, ciumenta, invejosa, teimosa…, sofre muito e faz sofrer os outros. Mas esses sofrimentos não são cruzes, no sentido cristão da palavra. São apenas a secreção ácida do nosso egoísmo; trata-se de faltas mais ou menos graves, que evidentemente Deus não quer.
Se fôssemos fazer as contas, veríamos que a maioria dessas dores ruins procedem de uma dupla fonte: a fonte do amor-próprio e a fonte do amor-pequeno.
A fonte do amor-próprio
O amor-próprio é uma fonte de péssimas cruzes. Como o orgulho nos faz sofrer! Que feridas infeccionadas não provoca! Basta uma lufada de ar – uma pequena desconsideração ou indelicadeza –, e o amor-próprio se sente atingido como por um estilete.
Uma pessoa orgulhosa é incapaz de tolerar, sem ficar magoada – sem se meter num calvário de sofrimentos íntimos –, a menor humilhação, mesmo causada involuntariamente. Fica alterada, abatida; grava a mágoa na memória e a vai remoendo lá dentro; cultiva-a na imaginação, aquece-a ao fogo da autocompaixão, vai engrossando-a à força de lhe dar importância, e termina fazendo dela uma tortura insuportável. Sofre, e julga-se vítima. Escorrem-lhe pelas faces lágrimas de tragicomédia.
Bastava que fosse um pouco mais humilde, que soubesse relevar minúcias, que se esforçasse um pouco por compreender, por desculpar, por oferecer a Deus as pequenas contradições, para não ter sequer um miligrama dessa cruz inútil, que não é a cruz de Cristo.
Se a pessoa orgulhosa sofre com tormentos fabricados pelo orgulho, que dizer da invejosa? Sempre comparando-se com os outros, sente subirem-lhe no coração ondas de melancolia, depressões enciumadas, revoltas contra a sorte e até clamores íntimos – ensopados de lágrimas de revolta – contra a Providência de Deus. Essa pessoa invejosa, que chora frustrações, foi ela própria a criadora da sua falsa “cruz”. Tivesse um coração mais generoso, enxergaria, feliz e agradecida – na mesma situação em que só vê infortúnios e injustiças da vida –, dez mil bondades de Deus e motivos de ação de graças, um panorama de miúdas e saborosas alegrias, que em vez de queixas lhe poriam canções dentro da alma.
A fonte do amor pequeno
Vejamos agora a segunda fonte das falsas cruzes: a do amor-pequeno.
Já de início, poderíamos dizer que existe um sinal infalível de que o nosso amor é pequeno: o mau humor. Para quem ama pouco, toda dedicação, toda paciência, toda compreensão solicitada pelo próximo é excessiva e aborrecida, qualquer sacrifício causa revolta ou mal-estar.
O amor grande leva a generosidades grandes e faz com que nem se perceba o sacrifício. Como dizia Santo Agostinho: “Quando se ama, ou não se experimenta trabalho, ou o próprio trabalho é amado”. Pelo contrário, o amor-pequeno transforma uma palha numa “cruz” insuportável. Então, um sacrifício que caberia “dentro de um sorriso, esboçado por amor” 2, não cabe na vida e gera mau humor. Este humor soturno vai configurando um tipo de personalidade que se caracteriza pelos contínuos resmungos, queixas constantes e incessantes protestos. A “reclamação” é a sombra do amor-pequeno, o sinal que o dá a conhecer.
Se olharmos de perto o que há por trás dessas reclamações, veremos que, em noventa por cento dos casos, é apenas a pura e simples realidade da vida, com as suas normais incidências, lutas e esforços. Por outras palavras, o que há na raiz do mau humor é apenas a falta de aceitação da vontade de Deus no dia-a-dia.
É triste lamentar, como se fossem coisa do outro mundo, dificuldades que são normais. Não é nenhuma contrariedade inesperada o fato de que os outros tenham asperezas de caráter, de que o cumprimento do dever canse, de que alcançar metas profissionais ou melhoras nos que nos cercam – especialmente no marido, mulher, filhos – e nem digamos a correção dos nossos próprios defeitos, seja algo lento e demorado.
No entanto, é muito comum que, ao constatá-lo, nos sintamos indispostos, nos deixemos levar pelo aborrecimento, pela impaciência, pelo protesto, e percamos o bom humor. Reações de todo desproporcionadas e ridículas, pois lá onde nós imaginamos grandes “cruzes” está apenas a vida, a vida que, com um pouco mais de amor, ficaria pontilhada de alegrias e coroada de ações de graças.
Cristo pede-nos que tomemos com amor a cruz de cada dia (Lc 9, 23), é certo, mas – lembrando o que dizia João Paulo I – essa cruz deveria ser carregada com o “sorriso cotidiano” e não fazendo dela a “tragédia cotidiana”. No entanto, muitos conseguem perder o sorriso e ficar com a tragédia.
Bastam-lhes para isso duas coisas: em primeiro lugar, amar pouco. Em segundo lugar, viver num mundo de fugas imaginativas e sonhos irreais. Muitos são os que reclamam do real – que é a vida, sempre rica em possibilidades de amar, que Deus nos dá – e passam a instalar-se, esterilmente, no mundo irreal das hipóteses: se eu tivesse essas outras condições pessoais, essa sorte, essa oportunidade profissional…; se a minha mulher fosse mais bonita, pacífica e econômica…; se o meu marido desse mais atenção à família…; se o meu país tivesse uma economia estável… E, assim, enquanto vivem no mundo do “tomara que”, atolam-se no que São Josemaria chamava a “mística do oxalá”. Desse modo, estragam a realidade, que é a única que existe e que a cada instante nos oferece ocasiões de amar e de servir e, como consequência, de sermos felizes.
Quem chora injustamente por causa da cruz cotidiana perde a cruz de Deus e encontra a “cruz” do diabo. São cheias de sabedoria aquelas palavras da Imitação de Cristo que dizem: “Se levas com gosto a cruz, ela te levará. Se a levas a contragosto, acabas por torná-la mais pesada para ti e a ti mesmo te sobrecarregas. Se rejeitas uma cruz, sem dúvida encontrarás outra, e possivelmente mais pesada” (II, 12).
Fonte: Padre Francisco Faus