Quanta claridade naquele rosto!

Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Deus que se manifesta nas montanhas

 

Frei Almir Guimarães

Segundo domingo do tempo da Quaresma. Continuamos nosso retiro espiritual. Neste domingo somos levados a contemplar dois montes: Abraão e Isaque subindo o Monte Moriá e Jesus e seus discípulos mais próximos no alto da montanha da transfiguração. De um lado, a fé arrojada de Abraão e, do outro, a beleza do rosto de Cristo.

As coisas pareciam ir bem para Abraão, o pai de nossa fé. Ganhara um filho e alegremente continuava a testemunhar sua fé. A liturgia de hoje, porém, nos convida a acompanhar um delicado episódio que sempre nos interpela e questiona. O Deus que o havia visitado, que havia dado a ele e à mulher a alegria de um filho tão desejado, Isaque, coloca uma terrível prova diante do patriarca. Pede o sacrifício do filho. Ao chamado do Senhor, Abraão responde com presteza: “Aqui estou”. A eterna ladainha da prontidão: “Aqui estou”. Parece-lhe que esse Deus que enchera de luz a sua vida agora vai arrancar-lhe do peito o próprio coração. A ordem é esta: suba à montanha e ofereça como sacrifício seu filho, seu Isaque.

Ele entende mas sem querer entender. Há silêncios pesados da parte de Deus e de Abraão. Filho e pai caminham. Lenha, fogo… tudo preparado. Faltava o carneiro para a oferenda. “Vai oferecer o teu filho em holocausto…”. “Meu pai, está tudo…mas onde fica o animal para o sacrifício?”. “Deus providenciará, meu Filho.” Frase de peso que nós também pronunciamos em certas bifurcações delicadas da vida. “Deus providenciará”. Abraão deve renunciar à sua paternidade para apoiar-se unicamente na Palavra de Deus. Somente a fé. Nada mais do que a fé. A prova consiste em acenar a Abraão a destruição de sua paternidade. No final do episódio, o menino de Abraão é poupado. É o filho da promessa. Nosso Pai Abraão. O homem da fé pura. Apareceu um carneiro no meio dos espinheiros e oferecido o sacrifício os dois desceram a montanha.

Depois, muito depois, Jesus tomou três de seus apóstolos e levou-os até uma outra montanha. O filho de Maria, o “filho do carpinteiro”, como era conhecido, colocou-se em íntima oração. Sempre esteve em união com o Pai. Aquele momento, no entanto, parece ter se revestido de maior intensidade. Brilho, roupas como nenhuma lavandeira da terra consegue alvejar. Luz, claridade, beleza. Diante dos apóstolos uma claridade nova para compreenderem a verdade de seu Mestre. O passado se fazia presença. Elias, aquele que fora arrebatado num carro de fogo. Moisés, o fulgurante, que ao ter falado com o Senhor tinha um rosto todo iluminado. Tudo é claridade.

Todos estão envolvidos na “nuvem”, símbolo veterotestamentário da Presença. Tudo está no devido lugar. Respira-se uma atmosfera de coisas definitivas. O além no aquém. Pedro tem vontade de eternizar aquele momento. Quer fazer três tendas. “É bom estarmos aqui”. E uma voz, uma comunicação, aquele que se comunica sem palavras mas atravessa tudo o que é opaco: “Este é o meu Filho Amado! Escutai o que ele diz”.

Parar, fazer silêncio, escutar com mais intensidade esse Deus que fala por Jesus. Escuta interior que nos leva a viver a verdade, saborear a vida em suas raízes, não passar superficialmente pelas coisas da vida. Não perder o essencial. “Este é o meu Filho amado. Escutai-o”. No coração da quaresma, no alto da montanha, num clima de busca de silêncio somos convidados a abrir nossos ouvidos à audição do Filho Amado. Dar hospitalidade ao Mistério de Deus que se avizinha.

Há ainda uma outra montanha a ser levada em consideração. Trata-se do Calvário, da colina do Gólgota. Lá está o homem. Agora todo feiura: suor, sangue, catarro, poeira, um traste, um condenado qualquer que precisa morrer logo para não comprometer o cumprimento religioso do sábado. O mais belo dos filhos dos homens completamente desfigurado. Os torturados, famintos, migrantes, drogados, sofredores nos hospitais, prisioneiros acossados, negros seviciados. Todos lembram o rosto retorcido do mais belo dos filhos do homens, o luminoso Jesus da morte transfigurada.

Abraão creu. Desceu da montanha iluminado com a coragem de caminhar vida afora à luz da fé. Os apóstolos descerão da outra montanha. Fizeram a experiência da beleza divina de seu Mestre. Nunca mais esquecerão este momento. As montanhas são misteriosas. Elas nos levam para as alturas. Convidam à interiorização.


Texto de reflexão

Eis a beleza que salva o mundo

Naquele Crucificado, diz o evangelista João, é a própria glória que se revela. Naquele Crucificado supera-se a fratura entre beleza e ser. Ali, a arte como arte divina de amar, oferece-se à contemplação cósmica.
A verdade do ser resplandece naquela imagem, imagem de um Crucificado, não tão bela para atrair o nosso olhar, mas representação da arte de amar de Deus, capacidade de amar até se tornar feio.
A beleza que transparece naquele Crucificado revela que bela e a pessoa que ama até o fim. A beleza apensa àquela imagem, fulge e insinua-se a cada coração atento. Beleza como irradiação e manifestação do ser, da sua verdade última e íntima, identificada com a ágape. A arte não é, pois, a representação bela de uma coisa, mas a interpretação com pathos e logos de uma coisa bela. A arte é uma hermenêutica da realidade, não uma representação. A arte decorativa não repropõe a forma das coisas, mas interpreta o logos e o nomos nela contidos, o projeto e o estatuto daquilo que é.
Naquele corpo tornado feio pelo espasmo, naquele corpo que é reflexo do coração, reflexo de um amor louco e escandaloso até dele morrer, reside a beleza, a verdadeira porta do conhecimento. Eis a beleza que salva o mundo.

Ermes Ronchi, Tu és Beleza Paulinas, Portugal, p. 134-135

Fonte: Franciscanos


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

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