Quando o rio não corre para o mar

Foto: Zolty77 - fotocommunity

É provável que você já tenha escuta­do, pelo menos uma vez na vida, a seguinte afirmativa: “As águas do rio correm para o mar”.

 

De certa maneira, sim! No entanto, no Brasil há um rio, o Tietê, que, ao invés de seguir pelo curso que de­semboca no oceano, segue para o in­terior do estado de São Paulo. Uma barreira natural o impede de seguir pelo menor caminho!

O Rio Tietê está a cerca de 22 km, em linha reta, do oceano. Mas, por causa das barreiras naturais da Serra do Mar, tem que percorrer o caminho mais difícil e o mais longo: mais de 1000 km até chegar ao Rio Paraná, na divi­sa com o Mato Grosso do Sul.

Não é difícil imaginar o que seria percorrer 22 km e o que é percorrer mais de 1000 km.

É assim que penso e visualizo o que foi 2020. Como se estivéssemos a 22 km do ca­minho mais fácil e, no entanto, impos­sibilitados de seguir por ele, percor­remos, obrigados, mais de 1000 km – e sem saber ao certo para onde.

Para o mar? ou para o deserto?

Em algum momento do percurso, as águas do Rio Tietê, já misturadas a tantas outras águas no meio do ca­minho, chegam ao Oceano Atlântico – através do Rio Paraná que se une ao rio Uruguai para formar o Rio do Prata que, finalmente, desemboca no “mar”.

É um final feliz para o Rio Paraná, que percorre mais de 4800 km até cumprir a jornada do seu curso. É, também, um final feliz para o Rio Tietê que, ao somar suas águas às do Rio Paraná, cumpre seu destino, ou a afirmativa de que “as águas do rio correm para o mar”.

Nesta jornada das águas, há um ou­tro rio cujo destino é não se juntar ao mar, mas se tornar um “nascedouro”. É o Rio Okavango que percorre, desde a nascente em Angola, cerca de 1400 km para se unir e deixar-se consumir pelo deserto de Kalahari/ África.

O Rio Okavango jamais alcança o mar, seu percurso finda no maior del­ta interior do mundo e ali ele começa uma outra jornada: a de possibilitar o gerar de novas vidas. As suas águas transformam a aridez do deserto num verdadeiro ecossiste­ma capaz de abrigar as mais variadas espécies – dos pequenos aos grandes animais.

Nas semelhanças

Esses dois rios estão em continentes que, sob vários aspectos, se asseme­lham nas histórias de exploração, de sofrimento, de corrupção, de pobreza e miséria. “No fim das contas: de luta pela sobrevivência”.

À semelhança dos rios, muitas vezes seguimos por caminhos que não es­colhemos, equilibrando o cansaço e o medo ao percorrer forçosamente os trajetos maiores.

2020 exigiu muito de todos nós. O coronavírus mudou o curso natural das nossas vidas. Apesar disso, tal como os rios, não podemos parar.

Muitas perdas ficaram às margens. Como a de milhares de vidas – mais de 200 mil mortos pela Covid-19. Muitos de nós, motivados pelo medo e também pelo cuidado, perdemos até o desejo de chegar no “portão de casa” – ou de tomar um cafezinho com aquele amigo “pau pra toda obra”.

Fomos engolidos por um tsunami invisível, que nos obrigou a repen­sar não apenas a nossa própria vida como, também, a maneira com que nos posicionamos frente às adversi­dades.

Experienciamos um pouco da morte atra­vés do findar de muitas coisas. Do findar de várias vidas (algumas conhecidas), do findar de uma rotina estabelecida (por vezes, há mais de décadas), do findar de hábitos enraizados (que, sob pressão, ti­veram as raízes arrancadas).

Passamos a ver no espelho, antes dos olhos, a máscara. Embora isso já nem faça diferença – já que os olhos, nos úl­timos tempos, talvez não tenham sido a verdadeira expressão da alma. Há um tanto de solidão nesses tempos.

Muitos trajetos e um só destino

Não se trata, portanto, de correr pro mar ou pro deserto… Mas, e sobretudo, do propósito para se insistir no percurso da caminhada.

Os rios não têm as mesmas opções que nós temos. Não podem escolher, por si mesmos, seguir por este ou outro curso. Nasceram para seguir por um caminho cuja escolha lhes antecede. Já em nosso curso há o imperativo de uma palavra linda, cujo conteúdo é ainda mais maravilhoso: liberdade.

Com ela em mãos, partimos por um ca­minho e mudamos de rota antes de che­garmos à metade dele – se assim quiser­mos.

Com ela em mãos, traçamos planos, cor­remos atrás de objetivos, fazemos e apa­gamos histórias. A liberdade nos permite usar borrachas até na consciência.

Penso que os re­flexos da pandemia são frutos das nossas liberdades. Dessas escolhas individuais que fizemos e fazemos. Escolhas que, as­sim como em épocas de cheias, os rios fazem, destroçando tudo que lhes toca intimamente as margens.

Mas também penso que, assim como o Tietê, podemos nos unir ao longo do per­curso para chegarmos vitoriosos ao final dele. Ou, ainda, como o Okavango, che­gar ao fim tornando possível e melhor a vida de tantos outros irmãos e irmãs.

É uma questão de liberdade. De fazer as escolhas certas. Porque no final de toda esta jornada prestaremos conta a um só Senhor: sejamos nós rios, mares ou hu­manos.

Liliene Dante

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui