O Sacrifício Voluntário – Quaresma

Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mat 16,24). Ao dirigir essas palavras aos discípulos, Jesus fala de algo que depende de nós. Algo que podemos fazer ou não -Se alguém quiser…-, algo que pertence, portanto, à nossa livre iniciativa.

 

Sempre a Cruz – a mortificação pequena ou grande – deve ser tomada livremente: só se nós queremos, é que sacrificamos um fim de semana para dar assistência aos pobres; se nós queremos, deixamos de ir ao cinema para visitar um doente; se nós queremos, assumimos em casa os trabalhos mais sacrificados; se nós queremos, mortificamos a curiosidade, a gula, a destemperança no falar, etc.

Sacrifícios voluntários? Mortificação? Meter na nossa vida mais “cruzes”, quando a vida já traz tantas sem procurá-las? Por quê?

O Espírito Santo  nos responderá pela boca de São Paulo.

Este Apóstolo usa com frequência de uma comparação: a imagem dos dois homens que estão sempre brigando dentro de nós: o homem velho e o homem novo. Poderíamos traduzir por “homem modelado pelos parâmetros mundanos, pagãos” e “homem modelado – conforme a imagem de Cristo – pelo amor, pela graça do Espírito Santo”.

Assim, escrevendo aos Efésios, São Paulo pede-lhes: Não persistais em viver como os pagãos, que andam à mercê das suas ideias frívolas […]. Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em justiça e santidade verdadeiras (Ef 4,17.22-24). É claro que lhes está propondo uma luta constante, mediante a qual deverão arrancar – como se arrancam no jardim as ervas daninhas – o homem velho, para revestir-se do homem novo.

As mesmas ideias, mais sinteticamente expostas, encontramo-las na Carta aos Colossenses: Vós vos despistes do homem velho com os seus vícios, e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem dAquele que o criou (Cl 3,9-10).

Um terceiro texto, dirigido aos Gálatas, completa os anteriores: Os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências (Gl 5,24). Para entender o que quer dizer, é preciso ter presente que, na mesma carta, havia explicado o que é a carne e as suas concupiscências (palavra que literalmente significa maus desejos), mostrando que por carne entende – como é comum em textos bíblicos – a vida egoísta, afastada da graça de Deus e mergulhada no materialismo, cujo deus é o ventre […] e só tem prazer no que é terreno (Fil 3,19).

Característica típica do homem velho é a de se deixar dominar pelos desejos da carne, que – como explica detalhadamente o Apóstolo – são fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdia, bandos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes (Gál 5,19,21).

Esta é a carne que deve ser crucificada, ou seja, mortificada, dominada e vencida com a renúncia, com a luta, com a Cruz.

Purificação voluntária

A mortificação voluntária – que faz parte essencial da luta do cristão – é um meio necessário de purificação.

Santo Agostinho tem um pensamento muito profundo a esse respeito. Lembra que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e que o pecado “deformou” essa imagem e apagou a semelhança. A graça de Deus, recebida no Batismo, fez-nos renascer para uma vida nova, dando-nos a graça. É tarefa nossa colaborar com a graça para limpar os males que nos deformam; só assim a graça nos devolverá à “forma” primeira, que é a imagem do ser de Deus [1], a autêntica personalidade dos filhos de Deus.

Como é sugestiva essa ideia, para nos ajudar a compreender que a formação cristã não se limita ao conhecimento da verdade, da doutrina – a ler, estudar, aprender- , mas exige um trabalho de purificação –de limpar, de extirpar, de endireitar, de podar o que procede do egoísmo–, para podermos “arrancar a triste máscara que forjamos com as nossas misérias[2]”, e estarmos em condições de ir reproduzindo fielmente em nós os traços do nosso modelo, Jesus Cristo.

Pensemos seriamente, nestes dias, qual é o nosso homem velho, quais são as nossas paixões e concupiscências, para assim podermos descobrir as mortificações que precisamos fazer para arrancar de nós as máscaras deformantes. Não é muito difícil adivinhar. Difícil é concretizar… e fazer.

Na realidade, todos notamos em nós mesmos defeitos que nos prejudicam, hábitos, vícios de diversas espécies, que nos dominam; falhas de caráter que atrapalham o nosso trabalho; atitudes desagradáveis ou omissões no nosso relacionamento com os outros… Pois bem, aí é que deve entrar a nossa cruz, ou seja, os sacrifícios necessários para corrigir tais defeitos e revestir-nos do homem novo.

Fonte: Pe. Francisco Faus – adaptação de um trecho do livro A sabedoria da Cruz

 

[1] Cfr. Sermão 125,4. Patrologia Latina 38,962.

[2] Cfr. Josemaría Escrivá: Via Sacra, sexta estação

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