O Deserto e a Cidade

Imagem de Peggy_Marco em Pixabay

Por Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo Metropolitano de Belém/PA

 

“O deserto na Cidade”, livro de Carlos Carretto, voltou-me à memória às vésperas de nossa visita ao deserto, junto com Jesus, para aprender com ele e contar com sua graça para enfrentar todos os desafios e vencer as tentações. De fato, mesmo quando a maioria das pessoas vive nas cidades, não são poucas que se experimentam solitárias e quase perdidas, pois estas cidades muitas vezes são espaços mais de trombadas do que de encontros autênticos! Nossos olhares se impressionam, nos dias de guerra que correm, com as multidões que fogem de suas cidades e sua pátria, suscitando a confusão entre cidades que se esvaziam e desertos das estradas que se enchem de gente desesperada. As ruas desertas se enchem de tanques de guerra, os céus refulgem não do sol ou de uma lua cheia, mas dos rastros de luz dos mísseis e bombas!

A grande aldeia global que se tornou o mundo vive nos últimos dias uma nova e inexplicável guerra. Atenção à palavra do Papa, na Encíclica “Fratelli Tutti”: “Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contato com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos. Voltemos o olhar para tantos civis massacrados como “danos colaterais”. Interroguemos as vítimas. Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atômicas ou os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas da sua infância. Consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz” (Fratelli tutti, 261). Vem o desejo de repetir, com as devidas adaptações, a palavra de Santo Estevão: “Homens de cabeça dura!” (Atos 7,51), palavras que podem ser aplicadas a tantas situações pessoais, sociais e políticas.

Todos os dias nos indignamos ao ouvir falar do mal que existe no mundo, como está acontecendo nestes dias. Raramente prestamos atenção ao mal que existe em nós, nos pensamentos, nas manias, no relacionamento pessoal, mesmo se esse é o único mal que depende de nós para ser eliminado do mundo (Cf. Raniero Cantalamessa, Gettate le reti, anno C, pág. 73 ss). Indo com Jesus ao deserto, no início da Quaresma (Cf. Lc 4,1-13), poderemos penetrar no mais íntimo de nós mesmos para verificar a força da tentação e os caminhos para vencê-la. “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão e, no Espírito, era conduzido pelo deserto. Ali foi posto à prova pelo diabo, durante quarenta dias. Naqueles dias, ele não comeu nada e, no final, teve fome” (Lc 4,1-2). Jesus é Deus, mas também é plenamente homem, e como homem quis ser provado em tudo, como nós, exceto no pecado (Hb 4,15), o que é uma grande consolação para nós!

“O diabo, disse-lhe: ‘Se és o Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão’. Jesus respondeu: ‘Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem’” (Lc 4,3-4). Jesus está com fome. Sendo Deus, ele podia fazer o milagre. Mesmo quando se pode e se tem todas as condições para agir, é necessário perguntar se se deve e quando se deve agir. Podemos ter armas, meios econômicos, forças físicas, mas não haveremos de cair na tentação de uma pretensa onipotência. Para a vida da Igreja, bem entre nós, há que se respeitar os tempos e os ritmos da natureza e das pessoas! A serenidade para dar os passos constrói nossa vida de Igreja, sem esquecer a virtude da prudência.

Depois, “o diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da terra, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e a riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu’. Jesus respondeu-lhe: ‘Está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto’” (Lc 4,5-8). O demônio é o pai da mentira. Não é verdade que seja o dono de todo o mundo. O mundo pertence a Deus e foi confiado à humanidade, para que todos cuidemos dela e não a dominemos irracionalmente. É hora de redescobrir nossa vocação de serviço humilde diante de todas as situações humanas, superando a vaidade e as tentações da posse, do prazer e do poder.

Em seguida, “o diabo levou Jesus a Jerusalém e, colocando-o no ponto mais alto do templo, disse-lhe: ‘Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito para que te guardem, e ainda: Eles te carregarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra. Jesus, porém, respondeu: ‘Também foi dito: Não porás à prova o Senhor, teu Deus’” (Lc 4,9-12). Demonstrações exibicionistas de qualquer ordem não constroem a civilização nem o relacionamento entre as pessoas!

Nossa Igreja está presente neste mundo e deve ser sal, luz e fermento, saindo de si mesma, unindo-se para buscar o caminho da comunhão, demonstrando, justamente porque consciente da redenção operada por Cristo, ser especialista em humanidade, mas numa humanidade renovada, diferente para melhor!

Se muitas vezes nos sentimos no deserto, sabemos que não estamos sozinhos e podemos pedir: “No deserto da vida quando a sede vem, quando clamo bem alto e não vejo ninguém, eu me lembro de ti e me sinto feliz, pois escuto bem perto tua voz que me diz: Quem tiver sede vem a mim e beba, e do seio de quem crê em mim hão de brotar torrentes de água viva, jorrando sempre sem jamais ter fim! Muitas vezes a dor não me deixa dizer quanta sede de amor trago dentro do ser, mas tu ouves a voz do silêncio também e, no amor, me conduzes a fonte do bem. Quem tiver sede vem a mim e beba, e do seio de quem crê em mim hão de brotar torrentes de água viva, jorrando sempre sem jamais ter fim! O teu dom sem reservas eu vou receber, este pão que conserva tua vida em meu ser, como outrora fizeste pela Samaria, a tua presença me traz alegria. Eu quisera viver ao teu lado, Senhor, transformando minha vida em fonte de amor, onde todos que buscam, tentando encontrar em meu testemunho te ouvissem falar. Quem tiver sede vem a mim e beba, e do seio de quem crê em mim hão de brotar torrentes de água viva, jorrando sempre sem jamais ter fim!” (No deserto da vida quando a sede vem – Padre José Raimundo Galvão). Corramos à fonte!

Fonte: CNBB Norte 2

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