Por Frei Almir Guimarães
A fé é a única chave do universo. O sentido último da existência humana e as repostas às perguntas das quais depende toda a nossa felicidade não podem ser atingidos de nenhum outro modo.
Thomas Merton
♦ As leituras deste domingo, mormente a do Evangelho, nos convidam a fazer uma reflexão sobre o delicado e complexo tema da fé. Pensamos aqui, de modo particular, na fé que nos propõe Jesus com seus ensinamentos e com seu jeito de viver, sobretudo em seu modo de estar com o Pai. Ressuscitado, vive entre nós e pede nossa fé em seu mistério.
♦ Fé como uma luz que vem de Deus e que ilumina tudo. Luz… talvez seja esta a imagem mais apropriada para descrever a complexidade da fé. Luz que nos é revelada e que solicita nossa adesão. Não apenas um assentimento cerebral, mas aceitação de uma claridade para viver, conviver, colocarmo-nos diante do mundo, da terra, da água do sol em vista de nosso destino depois da vida, no que chamamos de além. Um certo olhar que lançamos sobre tudo porque fomos tocados pelo Mistério e pelo Cristo. Vivemos a dizer: “Creio, Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ Toda reflexão sobre o tema da fé precisa começar com alusão à aventura de Abraão. Idoso, sem descendência, o patriarca e sua mulher Sara são convidados deixar sua terra e se dirigirem a uma terra desconhecida. Irão na certeza de que este misterioso Ser que os convoca merece confiança. Terra distante, promessas de descendência numerosa. Ir em frente, sair, caminhar, confiar. A fé coloca-os num estado de busca. Abraão e Sara se jogaram nos braços do Mistério. Confiança irrestrita mesmo no meio do lusco-fusco. Fé de Santa Clara deixando à noite a casa paterna para a aventura do Evangelho. Fé, confiança, certeza para além das evidências.
♦ “A fé não é uma emoção, não é um sentimento. Não é um impulso cego, inconsciente em direção a algo vagamente sobrenatural. Não é apenas uma necessidade elementar do espírito humano. Não é o sentimento de que Deus existe (…). Não é apenas força da alma. Não é algo que sobe das profundezas da alma e enche a pessoa de uma sensação indizível de que tudo está certo” ( Merton, Novas sementes de contemplação, p. 124).
♦ Crer é saber-se precedido e amado pelo Senhor na existência. Crer é descobrir aquele que é fonte de minha vida, aquele que visita minha liberdade e quer guiar-me por um caminho de amor. Consequência que de tudo isso é que ações e decisões terão sentido na medida em que responderem ao dom do amor de Deus. Sabemos em quem colocamos nossa confiança. Repetiremos sempre: “Creio, Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ A fé não consiste em afirmar e repetir certo número de verdades que recebemos de uma vez por todas, uma caixa que guardamos para nada perder. Ela vai se fortificando ao longo da vida. Fé é vida que precisa ser alimentada, educada, revista. Uma coisa é a fé de nossa adolescência num determinado momento da vida. Nos acontecimentos que vão se sucedendo, no tecido da existência, vamos afirmando nossa convicção de um Pai que está por detrás de tudo e Jesus vivo a nos cercar, no desalento, mormente quando celebramos a ceia, fé na presença do Senhor no sacramento do matrimônio. Caminhar à sua luz mesmo quando precisamos de bengala para caminhar e de mãos que nos lavem o corpo e socorram a alma.
♦ A fé cristã se baseia na pessoa de Jesus, em seus ensinamentos, em sua paixão, morte e ressurreição. Ele nos tocou, fomos batizados, vivemos a vida dele, caminhamos na vida na sua companhia, celebrando sua presença. Nossa fé cristã tem cores próprias que haurimos de Cristo.
♦ A fé cristã significa apostar todas as fichas nesse Jesus de Nazaré que veio ao mundo da parte de Deus, conheceu os mistérios do coração humano, sofreu, morreu, ressuscitou e vive entre nós. A fé dá um sabor diferente a tudo que somos e fazemos. Convida-nos a nos reabastecer numa fonte fora de nós. Coloca à prova liberdade. “Creio Senhor, mas aumenta a minha fé”.
♦ Como todos os humanos temos questionamentos a serem feitos. Há perguntas que dançam em nossos lábios vindas do interior. Como chegar a uma verdadeira felicidade? Qual o bem a ser feito e o mal a ser evitado? O que decidir em situações complexas? Por que os justos sofrem? Por que o Senhor parece mudo? Qual o sentido de um voto de castidade perfeita? A fé nos convida a elaborar respostas a estas questões? Claro escuro. Certeza com sombras.
♦ A fé um dom. Não é apenas fruto de nossos empenhos e nossas “ginásticas espirituais”. É dada aos que pobremente se aproximam de Deus. “Eu te louvo, Pai, porque escondeste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelaste aos humildes”. Cabe a cada um abrir-se às visitas de Deus nos sinais dos tempos, nos reclamos da consciência, na audição das Escrituras e da Palavra viva que é Jesus.
♦ “Precisamos conhecer a Jesus de maneira mais viva e concreta, compreender melhor seu projeto, captar bem sua intenção de fundo, sintonizar com ele, recuperar o “fogo” que ele acendeu em seus primeiros seguidores, contagiar-nos com sua paixão por Deus e sua compaixão pelos últimos” (Pagola, Lucas, p. 280).
♦ “A fé não é apenas uma sisuda determinação de se apegar a uma certa forma de palavras, aconteça o que acontecer – embora, devamos sem dúvida estar dispostos a defender o credo com a própria vida. Acima de tudo, porém, a fé é abertura dos olhos interiores, dos olhos do coração para que se deixem encher pela presença da luz divina (Merton, Novas sementes de contemplação, Vozes, p. 127).
♦ Muitos de nós recebemos a religião e suas práticas em nossas famílias, por “contágio”, por “osmose”: imagens, missa, sacramentos, unção, missa de sétimo dia, crisma, ladainha de Nossa Senhora e assim por diante. Não questionamos. Vivíamos numa atmosfera religiosa. Fomos católicos sem pensar o que isso bem significa além de mera observância de ritos para viver e chegar à felicidade eterna. Não houve uma adesão pessoal ao Senhor e à fé cristã. A roupa que vestimos não serve mais. Será que herdamos a fé? Podemos herdar uma certa prática. A fé é fruto da ação de Deus e uma resposta livre da pessoa e da comunidade. Importante lembrar que a fé cristã não é “minha fé”, mas nossa fé. Há urgência de uma educação ou reeducação da fé. Pode ser que algumas pessoas que dizem terem “rejeitado” a fé, tenham deixado de acreditar numa fé sem reflexão e cerceadora de nossa liberdade e inteligência. Talvez não tenham rejeitado a Deus.
♦ Para que possamos chegar a uma fé transparente, vigorosa e substancial é preciso não valorizar devoções enganadoras. Será preciso limpar a casa de tantas estampas e flores de plástico e retornar à nudez do Éden, da cruz e da ressurreição, sem enfeites somente com a crua pergunta da fé. Urgente livrar-nos das crenças tagarelas e fantasiosas que os impedem de escutar o silêncio sem fim da verdadeira fé. Para tanto precisamos reaprender nossa solidão sonora de que falava São João da Cruz. Não se fugirá dela, mas haver-se-á de buscá-la como lugar do colóquio essencial, na intimidade consigo mesmo e com Deus, paradoxalmente “ausente”. Nada de temer o silêncio como se fosse prenúncio de morte. Urgente aprender a estar só, para enraizar nossos relacionamentos, nossos afetos, nossas obras não na emotividade superficial, no protagonismo ansioso ou no afã de reconhecimento, mas na mais profunda e mais discreta liberdade do verdadeiro amor (Inspirado em Simon Pedro Arnold, OSB)
♦ A fé é um descentrar-se, uma conversão difícil, requer uma morte a si mesmo, uma páscoa do eu humano. A fé pede que deixemos nos desarrumar interiormente segundo os planos do Altíssimo e as propostas de Jesus. Na realidade não é o homem que busca a Deus, mas Deus que busca o homem. “Adão, onde estás?”
♦ “A fé é como uma criança que não dá descanso, não se acostuma a hábito algum, sobretudo da indolência e da tibieza. Repugna-lhe comprometimentos. Ela é uma criança rebelde, ao mesmo tempo vulnerável e temerária, reflexiva e aventureira. Criança que nasceu em plena noite, sempre em estado de busca, desejando a luz” (Sylvie Germain).
Oração
Confiarei
Confiarei…
ainda que me perca em teus caminhos,
ainda que não encontre meu destino,
confiarei…
Confiarei…
ainda que não entenda tuas palavras,
ainda que teu olhar me queime,
confiarei…
Eu te seguirei, duvidando e andando ao mesmo tempo
e te amarei
sem medo e tremendo ao mesmo tempo.
Fonte: Franciscanos
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.