NO TEMPO E NA ETERNIDADE
Havia de chegar um dia em que a presença de Maria já não seria visível para os olhos dos seus filhos. Deus a chamou a Si. João, o discípulo-filho por excelência, a vislumbrará então gloriosa – Mãe, sempre Mãe – no céu. Assim descreve a sua visão no livro do Apocalipse: Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e clamava com dores de parto… (Apoc 12, 1-2).
Adivinha-se nesta imagem celeste a Virgem-Mãe, aquela que víamos associada ao sacrifício de Jesus, dando à luz com dor os filhos de Deus, nós. A visão de São João mostra-nos que, desde que foi glorificada no céu – Rainha coroada de estrelas –, Maria continua a ser até o fim dos séculos Mãe de todos os homens, dos que são filhos de Deus e irmãos de Jesus Cristo.
Uma das mais doces verdades da nossa fé é o mistério da Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma aos céus. A cheia de graça, a que nunca pecou, não podia ficar sujeita à corrupção da morte, estabelecida por Deus como castigo do pecado. Por isso, a Igreja definiu solenemente – expressando uma verdade que, desde tempos antiquíssimos, era patrimônio da fé do povo cristão – que “a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem Maria, completado o curso da sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória do Céu”[Pio XII, Const. Ap. Munificentissimus Deus, de 01.11.1950, in Enchiridion Symbolorum, cit., n. 2333;].
Eis a consoladora verdade: a nossa Mãe Santa Maria, na glória do céu, está agora junto da Trindade Santíssima em corpo e alma. Compreendemos bem o que isto significa? Quer dizer que Maria vive no céu a cuidar de nós, a olhar-nos, a interceder por nós, com o mesmo coração, com os mesmos sentimentos e com os mesmos afetos que tinha na terra. Não é um puro espírito. É uma Mãe humana, glorificada, mas plenamente humana. Agora, junto de Deus, Ela contempla – na luz da glória divina – todos e cada um dos seus filhos, em todos e cada um dos momentos da sua existência, e olha por eles: nas horas de alegria e de dor, nos transes difíceis, nos tempos de solidão, na suas quedas e nos seus reerguimentos… Não há um passo da nossa vida, não há um latejar do nosso coração, que não esteja sendo acompanhado amorosamente pelo Coração humano da nossa Mãe. E não há um passo que não esteja sendo assumido – visto e sentido como algo próprio – por esse Coração.
Contemplando este mistério delicado, Mons. Escrivá aponta-nos uma das suas consequências: “Surge assim em nós, de forma espontânea e natural, o desejo de procurarmos a intimidade com a Mãe de Deus, que é também a nossa Mãe; de convivermos com Ela como se convive com uma pessoa viva, já que sobre Ela não triunfou a morte, antes está em corpo e alma junto de Deus Pai, junto de seu Filho, junto do Espírito Santo”[Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, cit., pág. 187;]. É nesse clima de intimidade filial que discorre a devoção a Nossa Senhora.*
A DEVOÇÃO A MARIA SANTÍSSIMA
O nosso relacionamento, a nossa intimidade com Maria é essencialmente filial. O vínculo filiação-maternidade “determina sempre – como lembra a Encíclica Redemptoris Mater – uma relação única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe com o filho e do filho com a mãe”[Enc. Redemptoris Mater, n. 45;]. E a medula desse vínculo, evidentemente, é o amor.
Por isso, só perguntando-nos pelas características que tornam autêntico esse amor é que descobriremos os traços da verdadeira devoção a Maria Santíssima. Com isso, perceberemos também melhor o que Deus quis que representasse para nós o imenso dom que nos fez, dando-nos Maria como Mãe.
Comecemos pelos aspectos dessa devoção que se nos impõem de maneira mais imediata. Um cristão que vive de fé sabe que Maria o ama e o auxilia com carinho de Mãe. Sabe-a voltada maternalmente para ele. É natural que, dessa certeza, flua espontaneamente uma sincera afeição filial. “Nada convida tanto ao amor – comenta São Tomás – como a consciência de sentir-se amado”[cf. São Tomás de Aquino, Summa contra gentes, IV, XXIII;]. A devoção mariana manifesta-se, por isso, em mil expressões, delicadas e fervorosas, de carinho de filho: no tom afetuoso da oração que dirigimos a Ela, na alegria de visitá-la nos lugares onde se quis fazer especialmente presente, nos muitos pormenores íntimos do coração, que o pudor vedaria externar.
Juntamente com esse afeto filial, e impregnando-o intimamente, brota também espontaneamente um sentimento de profunda confiança. “Nunca se ouviu dizer – reza uma bela oração atribuída a São Bernardo – que algum daqueles que tivesse recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado”.
Esta certeira confiança dos fiéis exprimiu-se num leque multicolorido de invocações marianas, que traduzem a segura experiência do coração cristão: Mãe de misericórdia, Virgem poderosa, Auxílio dos cristãos, Consoladora dos aflitos, Onipotência suplicante… Era essa a confiança que fazia Dante escrever estes preciosos versos: Donna, se’ tanto grande e tanto vali, / che qual vuol grazia e a te non ricorre, / sua disianza vuol volar sanz’ali; “Senhora, és tão grande e tanto podes, que para quem quer graça e a ti não recorre, o seu desejo quer voar sem asas”[Dante Alighieri, Divina Comédia, Par. XXXIII, 13-15;].
Amor e confiança. Trata-se de sentimentos com fortes raízes no coração. Ora é bem sabido que os afetos do coração possuem muitas vezes uma sutil ambivalência: são sentimentos que a custo se equilibram na difícil passarela onde o amor beira sempre o egoísmo. Não é raro que os muito sentimentais sejam também muito egoístas.
Por isso, se a devoção a Maria não estivesse fundamentada nos alicerces da fé – da doutrina – e da caridade, poderia deslizar imperceptivelmente para os declives do egoísmo. Tal coisa aconteceria no caso de uma devoção meramente sentimental – não animada por desejos de entrega e de amor operante – que, embora cheia de efusões de ternura, não incidisse fortemente na vida para modificá-la. Mais facilmente ainda se daria essa deturpação se a devoção mariana se reduzisse a um simples recurso para alcançar uma “proteção” ou uns “favores” meramente interesseiros.
Esses desvios, contudo, não se darão se o nosso amor filial a Maria entrar, como deve, em sintonia com o seu amor maternal.
Pensemos que o coração da nossa Mãe, “cheia de graça”, é uma fornalha ardente de caridade, de amor a Deus e aos homens. Nele se encontra, em medida quase infinita, a caridade derramada pelo Espírito Santo (cfr. Rom 5, 5).
Isto significa que quem se aproximar dEla com um coração reto e sincero se sentirá necessariamente impelido para o amor a Deus e ao próximo. Este é o segredo divino da devoção a Maria. Foi de fato para nos facilitar a entrega a esse duplo amor – o mandamento que resume todos os outros – que Deus, em sua misericórdia, quis dar-nos Maria como Mãe.
É por isso que a devoção a Maria, bem vivida, é sempre como um sopro – fecundo, cálido e suave – que acende o amor na alma, inflama a generosidade e move a abraçar sem reservas a vontade de Deus.
“Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus”, diz Mons. Escrivá, fazendo-se eco da tradição cristã [Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, cit., pág. 190;]. No fundo de tudo o que a Virgem Santíssima sugere ao coração dos homens, sempre pulsam as suas palavras em Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. A verdadeira devoção é, por isso, radicalmente “cristocêntrica” – conduz a Cristo –, é “teocêntrica”. Nossa Senhora vive e faz viver em função de Jesus. Não pode haver aí nem sombra de “idolatria”.
Ao mesmo tempo, é claro que, se Maria nos leva a Jesus, indefectivelmente nos aproxima também dos nossos irmãos, que são irmãos de seu Filho e filhos dEla. Ela é a Mãe comum que nos faz sentir fraternalmente vinculados em Cristo, membros da família de Deus (cfr. Ef 2, 19), e nos desperta na alma ânsias de doação e de serviço aos outros. O Coração de Maria infunde calor e força ao amor dos irmãos.
Como vemos, se a Virgem Santíssima nos auxilia – e esta é a sua missão maternal –, é única e exclusivamente para nos colocar mais plenamente em face das exigências da nossa vocação cristã. É com este fim que Ela intercede por nós junto de Deus e distribui as graças que o Senhor colocou em suas mãos. Mesmo os favores maternos que Ela nos obtém em pequenas coisas – como em Caná – são incentivos de carinho que nos ajudam a agradecer e a retribuir a Deus as suas bondades. Em qualquer caso, Ela estende a sua mão para nos elevar – suave e fortemente – até à meta da nossa vocação cristã, que é a santidade.
Com razão se pode afirmar, por isso, que o amor de Maria por seus filhos é simultaneamente doce e exigente. “Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face de suas precisas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar até a Cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação do irmão menor – tu e eu – com o Filho primogênito do Pai”[ Josemaría Escrivá, ib., pág. 195;].
A Jesus “se vai” por Maria, e a Jesus “se volta” por Ela, diz Caminho[ Josemaría Escrivá, Caminho, cit., n. 495;]. Quando, ao rezar a Ave-Maria, nós lhe pedimos “rogai por nós, pecadores”, fazemo-lo com a consciência de que demasiadas vezes nos afastamos de Deus e, como o filho pródigo, precisamos voltar para a casa do Pai.
Maria torna suave, também, e esperançado esse retorno. Não é verdade que, perto da Mãe, nos tornamos a sentir crianças? Despojamo-nos da nossa triste armadura de adultos, forjada pelo orgulho, pela vergonha ou pela decepção. E então o fardo das nossas misérias já não nos esmaga. Com Maria, sentimo-nos crianças reanimadas pela ternura da Mãe, alegres por descobrir que, para um filho pequeno, sempre é possível levantar-se, sempre é possível recomeçar, sempre é hora de esperar. Ela é a porta perpetuamente aberta na Casa do Pai.
A Estrela da manhã, a Estrela do mar, a nossa Mãe, guia-nos por toda a estrada da vida, passo a passo, na bonança e na tormenta, nos avanços e nas quedas, até alcançarmos o repouso definitivo no coração do Pai. Nunca percamos de vista que “foi Deus quem nos deu Maria: não temos o direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com amor e com alegria de filhos”[Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, cit., pág. 189;].
Há um antigo adágio teológico que diz: De Maria numquam satis, isto é, “nunca diremos o bastante de Maria”. Nestas páginas, tentamos aproximar-nos do esplendor do mistério de Maria. Pudemos captar apenas alguns dos seus fulgores. Mas, para alcançarmos uma luz mais plena, devemos imitar a Santíssima Virgem, procurando como Ela “guardar, meditando-as no coração” (cfr. Lc 2, 51), todas as coisas que Deus nos quis dizer acerca de Maria. Então compreenderemos cada vez melhor por que a Igreja aplica a Nossa Senhora estas palavras do livro dos Provérbios: Aquele que me achar encontrará a Vida e alcançará do Senhor a salvação (Prov 8, 35).
Fonte: Padre Francisco Faus – trecho do livro Maria, a Mãe de Jesus