“Não é bom que o homem esteja só”
Por Frei Almir Guimarães
Duas das leituras deste domingo nos colocam diante do tema do casal, do homem e da mulher, de seu nascedouro, da beleza de uma união que pode continuar viçosa através dos anos que passam. Tema delicado e bonito e, ao mesmo tempo desafiador. O amor de um homem e de uma mulher é tema caro aos poetas. De outro lado, crimes passionais e tragédias conjugais costumam a fazer parte até mesmo das páginas policiais dos jornais.
Os judeus procuraram entender as linhas do projeto de Deus a respeito do casal. Segundo as linhas do livro do Gênesis em seus primeiros capítulos, o mundo está em construção. O Senhor Deus é o grande artífice. Os céus, as fontes, os animais estavam diante de Adão, Adama, aquele que veio da terra. Ele é o rei da criação. Cabe-lhe dar nome aos animais dos campos e às aves do céus. Um imenso desfile diante do olhos do Rei da terra. Mas, catástrofe, não havia ninguém igual a ele. Uma solidão terrível. “Adão não encontrou uma auxiliar semelhante a ele”. Uma lágrima furtiva desce rosto abaixo de Adão. Lágrima que suplicava que o Senhor continuasse sua obra. Um sono, uma ausência na consciência de Adão. Quando Adão adormeceu, o Senhor tira-lhe uma das costelas e fecha o lugar com carne. Depois, da costela tirada de Adão, o Senhor fez a mulher e conduziu-a a Adão.
Uma parte de Adão, que seria diferente de Adão. Uma parte tirada para complementar. Tirada do homem, não inferior ao homem, feita para que os dois vivessem juntos a aventura da vida. “Agora é para valer… osso dos meus ossos, carne da minha carne”.
Os dois se deram as mãos e caminharam pelas amplas alamedas do Éden…
Casamento, vida a dois, vida de família, todos esses temas se entrecruzam em nosso pensamento nesta hora de reflexão. Não é bom que o homem viva só. O Senhor resolve “dar-lhe uma auxiliar semelhante”.
Há os começos: Essa costela que foi tirada, faz falta. Será para sempre essa peregrinação do masculino para o feminino. Os dois se completam, os dois se atraem, os dois passam a ser companheiros. Há uma escolha, uma primeira conivência entre ela e ela.
Escolher bem. Não entregar-se por paixão voluptuosa, mas numa louca vontade de querer bem. Ninguém se casa para ser feliz, mas para amar de verdade… para fazer o outro feliz, na alegria, na tristeza, na complementação, no carinho, no ardor dos envolvimentos carnais, na alegria de ter filhos, tecendo a história dos dois com outras histórias. E acontece um sim que deverá ser refeito ao longo do tempo que a tudo desgasta.
Um homem e uma mulher, dois mistérios, ambulantes. Tudo indica que um casamento vai bem quando os parceiros se sentem companheiros, experimentam alegria simples com a presença do outro, um desejo de ser para de maneira simples, bonita, não artificial.
Uma fidelidade criativa. Não apenas evocar uma promessa de palavras de antanho. Mas na auscultação das batidas do coração desse o homem que é pintor de paredes, advogado, gari, mas companheiro da esposa. Orgulhar-se de tê-lo como companheiro. Essa mulher, companheira, com sua graça e seus talentos, essa profissional competente e mãe das crianças. Construção lenta da unidade na diversidade: na paciência de todos os dias, respeitando os silêncios eloquentes, abeirando-se com respeito da fragilidade que é comum a todos. Sem arrogância. Fidelidade da mente, do coração e do corpo.
Nada de ficarem encerrados entre as quatro paredes de uma casa, vivendo num mundo fechado, egoísta. Casal aberto… capaz de conviver com outros casais que constroem uma história bonita e aberta e não apenas olhando-se narcisisticamente um para o outro. “Nossa casa, nossos passeios, nossos negócios, nosso mundinho…”. Precisamos de casais maduros.
Perguntaram, certa feita a Lya Luft, o que seria um casal perfeito. Assim ela respondeu: “Imediatamente ocorreu-me que parceiros de um casal ‘perfeito’ precisam se querer bem como se querem os bons amigos, e temperar esse afeto com a sensualidade que distingue amizade de amor. Duas pessoas que compreendem sem ressentimento nem cobranças, a inevitável dose de peculiaridade do ser humano e sua dificuldade de comunicação. Em última análise, toda a sua complicação” (Perdas & Ganhos, Record, p. 77)
Casamento que é construção de todos os dias, que não acontece no dia do casamento, mais bem depois, no passar do tempo, na fidelidade de todos os momentos, na vontade de extinguir o egoísmo que tudo mata, lutando contra toda falsa “independência” dos dois. Casamento, realidade camaleão, com os filhos, os sucessos e os fracassos, os pais de um doente, os dias de sol e de tempestade, uma construção que não termina, casamento dos primeiros anos e no outono da existência.
Os cristãos que se amam, se unem no Senhor. Os dois que são discípulos de Cristo fazem de sua casa a Igreja doméstica. A celebração do sacramento do matrimônio realizam-na com simplicidade bela, com a presença dos amigos e daqueles que são exemplos de fé. Preparam-se espiritualmente para se unirem no sacramento do casal.
Tudo está feito e tudo está para ser feito. O casamento acontece depois de boa parte da caminhada. E os cristãos iluminam seus passos com a fé e constroem sua casa sobre a rocha: amam-se na qualidade do amor de Cristo por sua Igreja, alimentam-se juntos da Palavra todos os dias, iluminam outras vidas com a qualidade de seu amor, abrem o coração de seus filhos para o Evangelho e assim fermentam o mundo.
Não é bom que o homem viva só.
Texto seleto:
Desenvolver o hábito de dar real importância ao outro
Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de maneira autônoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar o que outro diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir meu ponto de vista. A tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois tem outra experiência de vida, olham de outro ponto de vista, desenvolveram outras preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a verdade do outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a motivação que fundamenta o que diz, inclusive as palavras agressivas. Para isso, é preciso colocar-se no lugar do outro e interpretar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo (A alegria do amor, Papa Francisco, n. 138).
Fonte: Franciscanos
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.