Por Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Mt 18,1-5.10. Trata-se da passagem na qual Jesus coloca uma criança no meio dos apóstolos e fala do valor dela como anjo em relação ao Reino dos Céus. Essa passagem é lida no dia dedicado aos Anjos da Guarda, festa celebrada, desde o século V, na Espanha, no dia 29 de setembro, juntamente com o Arcanjo Miguel. A mudança de data para o dia 2 de outubro ocorreu a partir de 1670, quando o Papa Clemente X universalizou a celebração com o objetivo de valorizar as crianças. Será por quê?
O Arcanjo Miguel tem relação com o Anjo da Guarda! Ambos são protetores. Quem nunca ouviu uma criança rezar, com a candura da voz de um Enzo ou de um de Heitor, a oração que a vovó Lourdes ensinou: “Anjinho da Guarda, meu bom amiguinho, me leve sempre, pelo bom caminho.” São várias as orações ao Anjo da Guarda, mas essa é a mais conhecida e de fácil memorização para uma criança rezar ao dormir. Mt 18,1-5.10 apresenta Jesus valorizando a criança. Será por quê? Como o judaísmo assimilou a ideia de anjo?
A crença em anjos é antiga. Os judeus acreditavam que cada um tinha o seu anjo protetor. A concepção de anjo veio do mundo persa e foi incluída na fé judaica para afirmar que Deus tem uma corte de anjos ao seu lado. A Bíblia cita muito os anjos: Anjo de Javé (Gn 16,7), mas também o Anjo exterminador de Javé (Nm17,6-15). Evangelho é composto do substantivo anjo, do grego angelos e significa Boa-Nova. Disso decorre que o anjo é aquele que traz a palavra de Deus. O líder da comunidade, no Apocalipse, é chamado de anjo. O anjo é um ser criado por Deus para agir em seu nome. O anjo é Deus mesmo.
Os anjos são protetores. Miguel é anjo protetor dos judeus (Dn 10,13-210; 12,1). Sua fama de protetor foi reforçada, na Baixa Idade Média (séc. X-XV), quando viver era sentir medo de ir para o fogo do Inferno, um imaginário criado pela Igreja para dominar as almas com a “Pastoral do Medo”. Miguel passou a ser anjo da balança que pesa almas e faz todo o esforço para salvá-las. Por ser protetor de almas, ele passou a ser São Miguel e Almas. Sua fama se espalhou em velocidade ‘cibernética’. Virou santo e padroeiro da Igreja Católica, mas também guerreiro, guarda do Paraíso e detentor do poder de ir ao Inferno para buscar almas.[2]
O livro do Êxodo fala que Deus enviará um anjo para nos guiar pelo caminho até o lugar que Ele tem preparado para nós (Ex 23,20). Tobias viajou, tendo ao seu lado, o anjo Rafael (Tob 5,6). Sabedor e conhecedor dessa visão, Jesus compara crianças como anjos no céu (Mt 18,10). Elas têm dentro delas a pequenez, a fraqueza e a humildade. Os apóstolos são chamados a viver como as crianças (Mt 18,3-4).
Para os judeus, no tempo de Jesus, as crianças eram privadas de direito e de consideração. Eram símbolo de pequenez e de pobreza. Não sendo consideradas como modelo de virtude, elas não tinham voz nas reuniões. Deviam somente escutar e aprender. [3] Os rabinos não demonstravam interesse pelas crianças. Conta-se que certa vez o Rabino Dosa B. Arquinos disse: “O sono matinal, o vinho do meio-dia, o tagarelar com crianças e o deter-se nos lugares de encontro do povinho fazem morrer o homem” (Ab.3,10).[4] No mundo antigo, era normal a prática de abandonar recém-nascidos no lixão das cidades. Essas eram resgatadas e criadas como escravos. [5]
Na Idade Média, as crianças eram vistas como pessoas frágeis, infantis, mas eram tratadas como adultas. Tinham que trabalhar e vestir como eles. Eram um adulto em miniatura, um ser imperfeito. Por isso, alguns pensavam que elas não tinham salvação, caso morressem. As pinturas medievais do menino Jesus com um rosto de adulto foi uma tentativa de valorizar e pedir a salvação para as crianças. Houve, nessa época, muitas aparições de Jesus menino para os santos. Alguns idiomas, como o francês, conservaram essa mentalidade, quando grafa criança como ‘enfant’, um infantil. Já o português usa criança, que vem de Deus Criador. A devoção ao Anjo da Guarda, no séc. XVII, foi o modo como a Igreja encontrou para valorizar as crianças diante da sociedade, ao afirmar que elas tinham que ser protegidas pelos adultos, pois eram caras a Deus, precisavam de catequese.
Contrário ao comportamento dos seus coetâneos, Jesus acolhe crianças. “Na atitude de Jesus se percebe uma submissão voluntária e imediata às crianças. Nisso podemos perceber um aspecto característico da sua atividade. Tendo como pano de fundo a insignificância da criança, essa atitude de Jesus é entendida através da oferta de graça àqueles que nada têm, como uma crítica aos preconceitos do mundo dos adultos. A criança é considerada, de fato, como interlocutor de Deus.” [6] Não querendo absolutizar a inocência das crianças, Jesus chama a atenção para a modéstia, a ingenuidade, a pequenez, a receptividade e a simplicidade das crianças. Características essas que possibilitam o acesso ao Reino de Deus. As crianças são para Jesus os modelos ideais do Reino. Que as tenhamos como inspiração e delas cuidemos com o valor da justiça, da igualdade do Reino de Deus aqui e agora. Amém!
Fonte: Franciscanos
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] SÃO MIGUEL. In: VAN DER POEL, Francisco. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Editora Nossa Cultura LTDA, 2013, p. 992.
[3] BONNARD, Evangelio segun San Mateo, 426. Não obstante esse comportamento de rechaço das crianças da vida social, os judeus, por outro lado, as consideravam como um dos principais sinais da bênção divina e, por isso, lhes reservavam muitos cuidados (Ez 16,4; Lc 2,27; Gn 17,12; Ex 13,1-15; 2Mac 44,7; Nm 15,39; Lc 2,42).
[4] Texto citado por KITTEL, Grande Lessico, V, col. 645.
[5] CROSSAN, J. D., O Jesus histórico, Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.306
[6] GNILKA, Il vangelo di Matteo, II, 240-241.