Núncio na Síria: depois da guerra explodiu a “bomba pobreza”

Papa Francisco e o cardeal Mario Zenari (Vatican Media)

O cardeal Mario Zenari veio a Roma para o encontro da Reunião das Obras de Ajuda às Igrejas Orientais (Roaco). Assim que desembarcou vindo de Damasco, o Cardeal foi rezar no túmulo de São Paulo. Após a celebração dos santos Pedro e Paulo com o Papa, ele rezou diante do túmulo de São Pedro confiando-lhe o destino da terra martirizada por mais de uma década de conflito e agora pela pobreza endêmica, pelos embargos e pela crise da Covid-19. “A espiritualidade dos Santos Pedro e Paulo é muito forte para mim, porque há mais de quarenta anos estou a serviço de Pedro, como representante pontifício, doze deles na cidade de Paulo, em Damasco”. Durante o encontro com o Vatican News,  ilustrou a situação atual do país, cenário de confrontos entre cinco exércitos estrangeiros, divididos internamente ao ponto de haver regiões que já utilizam moedas diferentes. “A esperança da Santa Sé e da comunidade internacional é que a Síria seja independente e unificada, mas a realidade é completamente diferente”.

 

Entrevista com o cardeal Zenari

Eminência, depois de mais de dez anos de guerra e devastações na Síria, há alguma melhoria ou a situação estagnou ou até piorou?

Infelizmente, não há melhorias. Pode-se dizer que em algumas áreas da Síria as bombas não caem mais, exceto no noroeste, na província de Idlib, onde há confrontos de tempos em tempos, mas, como repito com frequência, uma terrível bomba explodiu no país que afeta – segundo dados da ONU – cerca de 90% da população. É a bomba da pobreza, que reduz os sírios a viver abaixo da linha da pobreza, porque após dez anos de guerra há destruição, não há reconstrução, ainda não há retomada econômica e o processo de paz está parado. E enquanto isso, a pobreza avança muito rapidamente. Por exemplo, em Damasco quando saio vejo cenas que não via antes, como as filas de pessoas em frente às padarias que vendem pão a preços subsidiados pelo Estado, pois os pobres não têm dinheiro. Também pode-se ver longas filas de carros parados em postos de gasolina e não há gasolina… Imagens semelhantes não se via nem mesmo durante o período mais duro da guerra. A população chama este período crítico de “guerra econômica”. Uma guerra que realmente sufoca a população.

Acrescentemos a isso as sanções… 

Sim, as sanções estão atingindo duramente e freando a retomada econômica. Junto com as sanções há o problema da crescente corrupção, casos de má administração… Há cerca de dois anos, a crise libanesa também vem atingindo duramente a Síria, especialmente no setor financeiro, com efeitos negativos sobre os projetos humanitários que as dioceses tentam levar adiante. Efeitos negativos que, naturalmente, também provêm da pandemia universal. Isto significa que outro mal se abate sobre a Síria e isso é um esquecimento, um manto de silêncio. Muito raramente se fala da Síria quando, ao invés disso, há uma necessidade urgente de falar do país, porque se – esperamos que não – o processo de paz, com a ajuda da comunidade internacional, não for desbloqueado, se a reconstrução e o início econômico não forem favorecidos, a Síria será mais castigada com efeitos devastadores para seus habitantes.

Na plenária da Roaco, o senhor fez alguma solicitação especial?

Já sou um veterano da Roaco. Eu estava com colegas núncios que tinham vindo da Geórgia, Etiópia e outros países, eles eram por assim dizer “novatos” com seus problemas. Há dez anos eu represento a Síria, portanto, há dez anos eles me veem vindo para estender a mão por esta ajuda. Este ano estendi não apenas uma mão, mas duas, porque a situação – como eu disse – é bastante crítica. As estatísticas sobre o nível de pobreza da ONU são realmente impressionantes: a Síria está no topo das nações que sofrem. Então, este ano eu vim para Roaco e estendi as duas mãos… É óbvio que são ajudas valiosas, mas são gotas de água no deserto. Assim como a ajuda humanitária que chega destes países que impuseram sanções, mas dizem que querem continuar a ajudar – mesmo com bloqueios – são também torneiras no deserto. Para este deserto que é a Síria, seria necessário um grande rio.

E o que deve ser feito para chegar este grande rio de ajudas, também e sobretudo a nível político?

O enviado especial da ONU para a Síria continua repetindo que, antes de tudo, o processo de paz deve ser colocado em marcha, de acordo com a Resolução 2254 da ONU. Este processo está paralisado, portanto deve ser desbloqueado. E é necessário se livrar da síndrome do “You First”, ou seja, que as partes esperem que o outro comece. Todas as partes envolvidas no processo de paz, mesmo as várias capitais, devem colocar ofertas em cima da mesa ao mesmo tempo. Ofertas de boa vontade. Eu sempre digo que acima de tudo há três capitais envolvidas: Washington, Bruxelas, como União Europeia, e também Damasco, que deve fazer algo, gestos de boa vontade, especialmente no campo humanitário. Se todos, além destas três capitais, esperarem que a outra parte comece, não chegaremos a lugar nenhum, ficaremos bloqueados. E aqui precisamos de uma intervenção da comunidade internacional, de uma diplomacia alargada e construtiva que leve as partes para o tomar iniciativa.

O senhor teve a oportunidade, nestes dias de sua presença em Roma, de falar com o Papa para atualizá-lo sobre a situação síria?

Sim, tive a sorte de encontrar o Santo Padre privadamente alguns dias atrás. Todos os encontros com o Papa são sempre muito intensos. Nesta meia hora juntos, o Papa Francisco ouviu com grande interesse o que eu lhe disse e depois me disse: “Proponha-se e o que será proposto, estamos dispostos a fazer”. Portanto, uma total disponibilidade por parte do Papa para procurar alguma forma que possa ser útil: “Pensem, reflitam, sugiram”. Isto me encorajou muito.

Neste dia especial de reflexão e oração dedicado ao Líbano, o senhor poderia pensar em um evento similar para a Síria?

Acompanho com atenção este momento particular de reflexão pelo Líbano (não diretamente, embora três patriarcas que têm sua sede na Síria estejam participando), porque, como eu disse, a crise libanesa trouxe efeitos negativos também para a Síria. Espero que este encontro tenha um resultado positivo, traga frutos que possam ter um efeito sobre o Oriente Médio. Este encontro dos patriarcas com o Papa é realmente um evento. Não está excluído que possamos pensar em um encontro semelhante para a Síria. Infelizmente o Oriente Médio tem desgraças comuns, mas cada nação tem suas próprias características peculiares. Isso não exclui a possibilidade de que este exemplo possa levar a uma reflexão sobre algumas possibilidades para a Síria, similares ou de outras formas. Poderia ter um efeito “contagioso”, no sentido positivo, e assim sugerir no futuro alguma iniciativa também para a Síria.

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