Nos meandros do evangelista Marcos

No início de cada Ano Litúrgico, a Liturgia Dominical estabelece que se proclame um dos três Evangelhos Sinóticos: Mateus (Ano A), Marcos (Ano B), Lucas (Ano C). Ao de João, dá-se um espaço maior nos Ciclos do Natal e da Páscoa.

 

O Evangelho de Marcos se caracteriza por ser o mais antigo, o mais curto e o de mais fácil compreensão. Segundo a Tradição Católica e Copta, bem como alguns da Patrística (Hipólito, Clemente, Inácio de Antioquia, Pápias, Eusébio de Cesaréia), há um consenso que os nomes “Marcos e João Marcos” são a mesma pessoa. Sendo assim, ele é o filho de Maria, família rica de Jerusalém, em cuja casa os primeiros cristãos se reuniam para rezar (At 12,6-17). Seria a mesma sala “mobiliada, no andar de cima” onde Cristo celebrou a Última Ceia (cf. Mc 14, 12-16), onde teria acontecido o Pentecostes, com a presença de 120 pessoas (cf. At 1,12-15). Marcos seria, também, o “homem que carregava o cântaro de água” e que mostraria a sala para a Ceia (cf. Mc 14,13-14). Seria ele o “jovem envolto num lençol”, por ocasião da prisão de Jesus (14,51-52). Por fim, aquele que estava “sentado no sepulcro, vestido de branco” (16,5-8).

O livro dos Atos dos Apóstolos narra que, na grande fome predita pelo profeta Ágabo, os cristãos de Antioquia fizeram uma coleta para socorrer os necessitados de Jerusalém e enviaram-na pelos apóstolos Paulo e Barnabé (cf. At 11,27-30). Ao retornarem a Antioquia, trouxeram Marcos, junto (At 12,25).

Durante a Primeira Viagem Missionária, por motivos desconhecidos, Marcos os abandona na Ilha de Chipre e regressa a Jerusalém (13,13) – o que magoou muito a Paulo.

Ao planejarem a Segunda Viagem, Barnabé quis reincorporá-lo à equipe, mas Paulo se opôs, frontalmente, a tal ponto de se separarem: Barnabé e Marcos foram a Chipre e, Paulo com Silas, à Ásia Menor (15,36-41). Mais tarde, na prisão de Roma, os dois se reaproximam (cf. Cl 4,10; Fm 24). Ao escrever a Timóteo, Paulo pede que o traga, junto, pois “me será de grande ajuda no ministério” (2Tm 4,11).

Marcos foi discípulo de Paulo, mas, sobretudo, de Pedro que o chama de “meu filho” (1Pd 5,13). Juntos realizaram bom trabalho em Roma. O Bispo Pápias de Hierápolis (150 dC), o chama de “secretário e intérprete” de Pedro. Traduzia para o latim as pregações e catequeses e, pouco mais tarde, as deixou escrito em seu Evangelho. Cesário de Cesaréia assegura que fez isso a “pedido dos convertidos de Roma” para que não se perdesse riqueza dos ensinamentos de Cristo.

Hoje, sabe-se que Marcos se inspirou, também, em outras fontes como as “unidades” de parábolas, de milagres e, sobretudo, da Paixão – material já existente nas comunidades.

Segundo a Tradição Copta, após o martírio de Pedro e Paulo, Marcos foi para Alexandria (Egito) onde deu início a uma florescente comunidade cristã. Foi martirizado, no ano 68, enquanto celebrava o Dia da Páscoa e o seu corpo “foi arrastado, pela cidade, por uma parelha de cavalos”.

Em 628, mercadores venezianos roubaram (outros dizem que adquiriram) suas relíquias, introduzindo-as na Catedral de Veneza e, desde então, é o seu padroeiro.

Os coptas sustentam que o “crâneo está em Alexandria e, anualmente, no trigésimo dia do mês Paopi, celebra-se a Consagração da Catedral Ortodoxa Copta São Marcos”.

No seu Evangelho, Marcos traz o ensino de Jesus, realçando, sobretudo, suas ações e milagres (61 ao todo). Com Jesus “completou-se o tempo da espera, o Reino foi aproximado” (1,15) e é preciso agir com urgência. Por isso, usa, frequentemente, os advérbios “logo”, “imediatamente”, “em seguida”. Tudo é movimento e pressa. O povo afluía de todos os lados (3,7-8), o jovem vem correndo para perguntar: “que fazer para ter a vida eterna” (10,17)? Descreve acontecimentos simples, de modo vivo e atraente, até, nos detalhes como o “dormir sobre um travesseiro em plena tempestade, no mar” (4,35-41)

Poder-se-ia enumerar outras características. Porém, não pode faltar o objetivo pelo qual Marcos escreveu o Evangelho. Segundo a Tradição Católica e a Patrística, era para animar os cristãos de Roma em sua cruel perseguição, desencadeada por Nero (54-68). Sabe-se que muitos foram devorados por leões famintos, ou mortos em luta contra gladiadores, no Coliseu, como se fosse um espetáculo público. Diante de tanta crueldade, facilmente, poder-se-ia abandonar a fé. Marcos os anima, mostrando-lhes que Jesus, também, sofreu. Comparou sua vida como se fosse uma viagem de Nazaré, onde morava, até Jerusalém, onde sofreu a paixão.

Nesta caminhada, destacam-se três etapas que se encaixam, nitidamente, aos destinatários do seu Evangelho. A primeira é a grande aceitação que Jesus tem junto do povo que vinha de todos os lados para ouvirem sua doutrina e serem curados. As solicitações eram tantas que não tinha nem tempo para fazer as refeições (3,20; 6,31).

Por outro lado, as lideranças religiosas acusavam-no, falsamente (3,22), vigiavam suas palavras e ações (3,1-2) e tramavam sua morte (3,6). Os familiares achavam que estava “fora de si” (3,21) e seus conterrâneos O expulsaram da cidade (6,1-6).

Marcos descreve todo este contexto até na metade do seu Evangelho. A partir dali – segunda etapa – Jesus vai ficando cada vez mais sozinho. Começa a pregar que seu Reino não é de “libertação politica, nem de prosperidade material”, como muitos pensavam. Ao contrário, se apresenta como Servo Sofredor (Is 53,1-12) e, por três vezes, abertamente, fala da sua Paixão, Morte e Ressurreição (8,31; 9,31; 10,31-34). Os apóstolos e o povo não entendiam (9,32), talvez nem acreditavam nesta possibilidade. Pedro quer dissuadi-lo e recebe uma dura repreensão: “afasta-te de mim, satanás” (8,33).

As exigências para segui-lo são maiores: “Quem quer ser meu discípulo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e me siga” (8,34) e “Quem ser o primeiro, seja o último e o servidor de todos” (9,35).

No momento da prisão – terceira etapa – todos o abandonam (14,50). Pede ao Pai para que lhe tire a cruz (14,32-42). Quando morre, só algumas mulheres o acompanham, de longe (15,40). O sepultamento é feito às pressas, numa sepultadora que se encontrava perto (15,42-47). A ressureição ocupa pouco espaço, apenas, oito versículos (16,1-8) e as aparições são acréscimos posteriores (16,9-20).

O jovem que está sentado no túmulo e anuncia a Ressurreição às mulheres, pede que os apóstolos voltem para a Galileia. Isto é significativo porque – agora – são os apóstolos e os discípulos que devem perfazer o mesmo caminho, enfrentando as oposições e cruzes para que cada um chegue ao calvário da sua vida, abraçado à cruz/ressurreição.

Onde buscar as forças?! Entre os mais variados meios possíveis, Cristo nos deixa um exemplo de vida, bem como o centurião romano.

Os Sinóticos apresentam a pessoa de Jesus como alguém que tinha o costume de rezar, sozinho, na montanha, de noite. Marcos relata que, numa ocasião, após o trabalho na sinagoga, chegando na casa de Pedro, o atendimento continuou noite a dentro. Já não podia fazer o que era seu costume. Na manhã seguinte, levantou-se cedo e retirou-se para rezar. Quando O encontraram, disseram-lhe: “Todos te procuram e estão à tua espera”. Ao que Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares para evangelizar, pois para isto fui enviado” (cf. 1,21-39).

Parafraseando este contexto, poderíamos dizer: “Bem que Jesus poderia cair nas graças do povo e curtir os elogios do trabalho realizado no dia anterior! Mas, ´deixar o ninho´ e ir para a outros lugares para começar tudo, de novo – é o apelo que Ele nos faz”!

O outro exemplo é do centurião romano, um pagão que acompanhou todo o processo da paixão e morte. Percebeu que a postura de Jesus ultrapassou todos os paradigmas humanos: quando humilhado, não se perturbava; ao sofrer violência, não revidava nem ameaçava; contra as falsas testemunhas, silenciava; ao ser interrogado pelas autoridades políticas e religiosas, não respondia e, quando o fazia, respondia com tanta dignidade que as inquietava; ao receber a solidariedade das mulheres, foi delas consolador; na agonia da cruz, pediu que cuidassem da sua mãe e entregou-se nas mãos de seu Pai e Deus; antes de morrer, foi desafiado a mostrar sua divindade, descendo da cruz e, então, todos acreditariam; não desceu, mas rezou “Pai, perdoai-lhes”; e, inclinando a cabeça, expirou.

O centurião – quem sabe! tendo acompanhado outras crucificações – notou que Cristo teve uma postura e dignidade, totalmente, diferentes. Por isso, pode dizer “realmente, este é o Filho de Deus” (Mc 15,19).

É o Filho de Deus – não por realizar milagres ou ensinar doutrinas – mas pelo seu modo de morrer. Geralmente, nós pedimos milagres e manifestações grandiosas e nos esquecemos que Deus opera suas maravilhas no cotidiano da vida. Busquemos este jeito do nosso Deus e O amemos tal qual Ele é!

Fonte: Por Frei Luiz Iakovacz – franciscanos.org.br

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