Por Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Mt 19,3-12. Trata-se do diálogo de Jesus com os fariseus sobre o matrimônio, o divórcio e o adultério. Em outras palavras, Jesus reflete sobre a família. No evangelho de Mateus, as leis do livro do Deuteronômio são relidas nas perspectivas da vida em família, na sociedade e na relação com Deus. As leis do livro do Deuteronômio são citadas nada mais, nada menos, que 25 vezes.[2] Qual o sentido dessas leis ainda hoje, sobretudo a do divórcio? Como incluir os casais de nova união na vida da Igreja? Eles têm direito de receber a comunhão? Vale a pena casar-se?
Escrito com o objetivo de fortalecer a fé das comunidades cristãs formadas por judeus cristãos nascidos na Palestina, Mateus demonstra que Jesus é a realização do Primeiro Testamento com as suas leis, muitas delas marcadas por tradições ultrapassadas e longe do projeto de Deus. Por isso, Jesus atualiza algumas leis e contrapõe outras. É o caso da passagem que estamos interpretando.
Perguntado se o homem pode despedir, mandar embora sua mulher por qualquer motivo, Jesus retoma as leis deuteronomistas, a legislação da religião judaica, para estabelecer um modo de vida capaz de estabelecer relações que permitam agir conforme as propostas do reino de Deus. Moisés permitiu a certidão de divórcio (Dt 24,1) por causa da dureza do coração dos antepassados, mas nem sempre foi assim. Coração aqui significa razão, portanto, por causa da cabeça dura dos homens que não têm diálogo e amor para com as suas mulheres. Jesus relembra que no projeto de Deus, homens e mulheres se casam e assim devem permanecer. Ele acrescenta uma novidade à lei deuteronomista: o divórcio é permitido somente em caso de adultério ou de não cumprimento das normas sexuais presentes em Lv 18, que trata da proibição de casamento entre consanguíneos. O texto não admite outra possibilidade de casamento por causa da consciência possível daquela época. O matrimônio é necessário, na religião judaica, para gerar a vida e não para o prazer sexual. O cristianismo também seguiu essa norma. Daí tantas dificuldades em aceitar novas formas de relacionamentos.
A comunidade de Mateus também se recorda da fala de Jesus sobre a lei do levirato (Dt 25,5-10), isto é, da obrigação dos irmãos do marido de uma mulher viúva de se casarem com ela. Jesus responde aos saduceus, os quais não acreditavam na ressurreição e haviam posto a questão para Jesus sobre qual seria o marido na vida eterna de uma mulher que se casara sete vezes (Mt 22,23-33), já que na vida eterna não há casamento e que ali todos são como os anjos. Jesus não contradiz a lei, mas a complementa com uma explicação inusitada: na vida eterna não mais será necessária a lei humana do matrimônio para gerar a vida, pois ela se encontrará com a fonte geradora da vida, Deus Criador, que criou o ser humano para procriar a sua imagem. Não se trata de uma vida assexuada e desencarnada como pensavam os gregos ao explicar a categoria anjo, mas de uma vida plena em Deus.[3]
Os discípulos, assustados com a resposta de Jesus, afirmam que se é assim a situação do homem com a mulher, não vale a pena casar-se. Como bons judeus, os discípulos entendiam que a mulher era um objeto de valor que devia ser comprado e descartado, quando já não tinha mais serventia. Aliás, no tempo de Jesus, a mulher era comprada para o casamento, tendo preço diferenciado para uma virgem, uma virgem filha de um sacerdote e uma viúva. A última valia menos, somente 100 Zus, moeda da época.
Olhando para as crises atuais vividas nas famílias, na relação homem e mulher, as novas formas de matrimônio, o acesso dos casais de nova união ao sacramento da Eucaristia, somos chamados a repensar o nosso modo de compreender a questão. O Papa Francisco tem tido posturas de aberturas diante dessas questões e, por isso, é rejeitado por muitos homens e mulheres de Igreja. Ele parte do princípio do acolhimento. Os casais de nova união não estão excomungados, fora da Igreja, mas devem ser acolhidos e compreendidos com amor e misericórdia. Para ele, os casais de segunda união podem comungar. Sobre a separação, ele disse:
Às vezes, a separação pode até ser moralmente necessária quando queremos proteger o cônjuge mais fraco ou os filhos mais novos das feridas causadas pela prepotência, pela violência, pela humilhação, pela estranheza e pela indiferença. Quando os adultos perdem a cabeça, quando se pensa apenas em si mesmo, quando o pai e a mãe se machucam, a alma das crianças sofre muito, sente o desespero.
Para Francisco, a Igreja é “a casa de todos, não uma capela na qual cabe apenas um pequeno grupo de pessoas selecionadas. Não podemos reduzir a Igreja universal a um ninho protetor da nossa mediocridade”.[4] E eu acrescentaria, muitos casais de nova união vivem melhor a fé em comunidade que muitos casados segundo a lei. Com que direito podemos negar-lhes a comunhão? O grande desafio da Igreja, dos padres, é acolher, acompanhar sem julgar. É incluir, compreender e acompanhar caso a caso.
Viver casado ou em comunidade não é fácil para ninguém. Somos, na essência, individualistas. Não por menos, a origem da palavra cônjuge vem de canga, instrumento usado para guiar os bois no trabalho. Um deve seguir o outro. Em outras palavras, viver casado é estar “cangado”. No entanto, quando a relação é impossível, é melhor quebrar a canga e retomar o caminho do amor de outra forma. É como a poesia/música “A canga do tempo”, de Zé Fortuna e Paraíso, eternizada na voz de Lourenço e Lourival:
Com a canga de madeira os bois carregam a carga no velho carro em seu vai e vem. Com a canga do meu destino carrego a vida. E a vida carrega as dores que o mundo tem.
As dores vêm de meus sonhos despedaçados na estrada esburacada que em mim ficou. Por onde puxei meu carro de amor desfeito até que a canga do tempo me calejou. Todos temos nossa canga, mas nós não vemos, puxando a pesada carga da solidão até que o carro da vida um dia para no lamaçal sem saída do coração.
Assim é a vida. Apesar de tudo isso, vale a pena casar-se quando existe amor, ainda que a madeira da canga vá se desgastando nas estradas batidas das leis que aprisionam o amor.
Fonte: Franciscanos
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2]FARIA, Jacir de Freitas. A releitura do Deuteronômio nos evangelhos. In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta, Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230.
[3] BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos, v. I. São Paulo: Loyola, 1990. p. 331. (Bíblica Loyola, 1).
[4] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/05/internacional/1438770370_346487.html Acesso em: 6 ago. 2022.