Na linha de frente contra a Covid-19, mulheres lutam para se apoiar em favelas do Brasil

Foto de Daniel de Araujo Ferreira

Para Cláudia Raphael, vice-presidente da Central Única das Favelas, “o lugar de luta já é o lugar diário da mulher favelada. O que você faz quando você vê seu filho passando fome?”

 

Publicado originalmente em Publica – por Raphaela Ribeiro

Há mais de um ano, quando os primeiros casos de covid-19 foram registrados no Brasil, moradores de periferias e favelas do país já se preocupavam com a pandemia. Na época, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já recomendava medidas de prevenção como a higienização das mãos e o distanciamento social, mas a realidade das favelas era outra. Prevenir-se de uma doença contagiosa em territórios onde muitos moradores não têm acesso à água encanada ou álcool em gel, parecia impossível, assim como aderir à quarentena já que o setor de comércio e serviços é o que mais emprega os moradores desses territórios.

Hoje, cerca de 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas e periferias, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva. E, dentre os mais afetados pela pandemia nesses locais estão as mulheres, que chefiam quase metade dos lares brasileiros. Segundo a pesquisa, mais de 5,2 milhões dos moradores de favelas e periferias são mães, e mais de 92% dessas mulheres revelaram que tiveram ou terão dificuldade para comprar itens básicos de sobrevivência e de garantir o sustento e alimentação de suas famílias.

Em resposta a essa dura realidade, muitas mulheres assumiram a linha de frente de combate à covid-19. Esse é o caso do projeto “Mães de Favela”, criado em abril de 2020 pela Central Única das Favelas (CUFA), organização sem fins lucrativos que atua em favelas de todo o Brasil. O projeto identificou e cadastrou em uma base própria dados de mulheres chefes de família em 5 mil favelas em todas as unidades da federação, que receberam cestas básicas e um auxílio de R$ 120 por mês. Segundo dados da CUFA, mais de 1,4 milhão de famílias foram beneficiadas até agora.

A Agência Pública entrevistou Cláudia Raphael, vice-presidente nacional da CUFA, que explica que as mulheres não tiveram opção, mas tiveram que se colocar na linha de frente do enfrentamento à pandemia. “O que você faz quando você vê seu filho passando fome? Não tem opção! Esse lugar da mulher de favela sempre foi dela, esse lugar de liderança, de cuidar da família, sempre foi da mulher”, diz.

Cláudia Raphael é vice-presidente nacional da CUFA – Foto de Daniel de Araujo Ferreira

Na entrevista, ela conta sobre como as mulheres vêm se apoiando nas favelas durante a pandemia e a importância de olhar para esses territórios que, um ano depois, sentem cada dia mais os impactos do vírus. “Quando uma mulher perde o seu emprego e a sua renda, isso desestabiliza toda a família”, explica.

Desde o início da pandemia, os números de infecção e óbitos por covid-19 têm sido maiores nas periferias e favelas do Brasil. O que fez com que o vírus se alastrasse tanto nas favelas?

A pandemia trouxe à tona toda a precariedade do sistema sanitário e urbano das favelas. A favela nasceu da necessidade de suprir a falta de habitação e ela cresceu desordenada. Então, quando a gente tem um vírus que chega pela roupa, pelo ar, pela respiração, pelo toque, pela saliva, dentro de um lugar que não tem ar, circulação, que a luz não chega, o risco de contaminação é muito maior. Somando a isso tem a densidade demográfica, às vezes na favela você tem nove pessoas em um cômodo, uma família inteira em um cômodo. Isso é muito injusto, não tem isolamento social na favela. É por isso que as pessoas não ficaram isoladas e se mantiveram na rua, por uma necessidade de sobrevivência mesmo.

Na favela não tem essa possibilidade de um cômodo para cada um, “vamos alternar o horário de usar a cozinha, o banheiro”, nem banheiro as pessoas têm às vezes. A precariedade, a desigualdade, ficou muito evidente. A fatura, que é muito antiga, ficou muito exposta.

A precariedade, a desigualdade, ficou muito evidente. A fatura, que é muito antiga, ficou muito exposta”, diz a vice-presidente da CUFA sobre a realidade nas favelas com a pandemia – Foto de Daniel de Araujo Ferreira

Dentro dessa população mais afetada pela pandemia, estão as mulheres que sofrem com o desemprego. Surgiram diversas ações das comunidades para as próprias comunidades para mitigar isso, como o Mães de Favela do CUFA. Você pode contar um pouco de como vocês começaram o projeto?

Quando o coronavírus chegou ao Brasil e houve as indicações para fechar o comércio, o lockdown que a gente via tanto no estrangeiro foi chegando aqui, a primeira percepção que tivemos é que as pessoas estavam perdendo os seus empregos. Percebemos isso muito rápido porque na favela muita gente vive de renda informal, de empreendedorismo informal, de vender marmitas, comidas, o comércio de rua é muito pulsante, prestar serviços de manutenção e limpeza, segurança… A grande massa dos prestadores de serviço no Brasil mora em favelas, quebradas e periferias e está ali nessa chamada base da pirâmide.

E, como é que a gente ajuda todo mundo ao mesmo tempo? A gente tinha que ter um viés. E baseado em dados da pesquisa “A nova favela brasileira”, do Data Favela, vimos dados como o de que quase 50% das mulheres de favela são chefes de família. Isso é um dado muito importante porque quando essa mulher perde o seu emprego e a sua renda, isso desestabiliza toda a família. E a gente tá falando dos próprios filhos, dos filhos de pessoas das suas famílias que não tem condições de criar essa criança e elas que cuidam. As mães da favela também se tornam mães dos seus pais que já não podem mais trabalhar. E isso tudo com uma renda reduzida e muito em função da baixa escolaridade. Cerca de 21% das mães das favelas do Brasil foram mães antes de 20 anos de idade, meninas que por conta de terem filhos cedo sequer terminaram o segundo grau, o primeiro. Estamos falando de baixa escolaridade e isso se reflete na empregabilidade.

Quando a gente percebeu que tinha um nicho e que se a gente atuasse nele a gente resolveria a vida de muita gente, a gente apontou os nossos esforços para dar suporte às mães da favela do Brasil. E assim nasceu o projeto “Mães da Favela”. Então, a nossa primeira ação foi identificar como a gente poderia acertar em um alvo que reverberasse para além dele mesmo. E a partir disso foi uma estratégia muito orgânica, chamando a atenção da necessidade de olharmos para as favelas do Brasil. E aí começou a busca por recursos para essas mães.

Cláudia Raphael alerta que quase metade das mulheres que vivem em favelas são chefes de família: “quando essa mulher perde o seu emprego e a sua renda, isso desestabiliza toda a família” – Foto de Daniel de Araujo Ferreira

E, depois de um ano de pandemia, como anda a situação?

A gente acabou de lançar o “Mães da Favela 2” porque agora estamos sentindo muito mais os efeitos sociais e econômicos da pandemia. As pessoas estão mais desempregadas do que estavam há um ano atrás. O desemprego aumentou desenfreadamente e a gente continua mantendo os nossos esforços aqui para buscar doações tanto físicas quanto em recursos que a gente possa compartilhar com essas mães, através de meios de pagamento digitais. Isso, por exemplo, foi o que viabilizou o apoio às mães das comunidades ribeirinhas na região norte. É muito difícil você chegar numa canoa com toneladas de comida. Pelos meios digitais a gente consegue ir mais longe.

Mas, a gente percebe que as pessoas nas favelas estão realmente perdendo o último fio de esperança. Eu aqui em Paraisópolis tenho muita dificuldade em lidar com isso, porque o número de doações diminuiu consideravelmente e desde de janeiro não recebemos cestas, mas as pessoas continuam batendo na nossa porta diuturnamente e cada vez com histórias mais tocantes, cada vez demonstrando mais ainda a necessidade de serem apoiadas para não passar fome. No início da pandemia a gente tinha muito a preocupação com materiais de higiene. E as pessoas continuam precisando de cloro, sabão, só que hoje elas precisam mais ainda de arroz e feijão.

Então, a gente tá mantendo os nossos esforços e abrindo novas frentes de divulgação e parcerias, para continuar ajudando as mães da favela e todo o ecossistema que elas mantêm.

O que levou essas mulheres e mães a assumirem esse papel, de se colocarem nesse lugar de luta e de combate?

Eu acho que esse já é o lugar diário da mulher favelada. Na verdade, a pandemia, para a favela, não trouxe muitas novidades. A favelada já lida com a possibilidade de morte diariamente, seja morte pela fome, seja pela depressão de um uma mãe de família que não consegue trabalho e não consegue sustentar a sua família. Essa desesperança só aumentou com os números provocados pela covid. Então, a mulher ser líder, ser forte, não desistir frente às dificuldades, isso já é o normal.

Mas, eu acho que tudo se potencializou com a pandemia porque as crianças também ficaram mais expostas. As crianças que são cuidadas pelas creches, que são alimentadas pelo sistema de educação público, elas ficaram sem a referência do espaço físico onde elas são educadas e onde elas também são cuidadas. É o horário que essa criança não está na rua, enquanto a mãe está trabalhando, por exemplo. As mães tiveram que lidar com a falta de trabalho, com os filhos em casa ou na rua porque a mãe não pôde deixar de trabalhar e a escola não estava mais à disposição para atuar também na guarda dessa criança.

Então, não tem opção. O que você faz quando você vê seu filho passando fome? Não tem opção! Ou você se deprime e joga a toalha pro alto – e a gente, infelizmente, tem visto muitos números ligados à depressão e suicídio porque as pessoas estão no auge da pressão com a pandemia. Esse lugar da mulher de favela sempre foi dela, esse lugar de liderança, de cuidar da família, sempre foi da mulher.

E como tem sido essa organização das mulheres? Existia alguma iniciativa como o Mães de Favela antes da pandemia ou essa rede foi se fortalecendo com a pandemia?

O que sempre existiu foi uma rede aqui na Central das Favelas de agendas positivas para as mulheres. A gente tem dentro da CUFA o núcleo “Maria, Maria”, onde cada estado constrói o “Maria, Maria” de uma forma. A frente de mulheres na CUFA sempre existiu, só que do lado de dar visibilidade às mulheres protagonistas da CUFA. O que aconteceu agora foi uma mobilização focada em atendimento às mulheres, um suporte emergencial.

A gente sempre focou em mulheres, se preocupou em capacitá-las e formá-las em profissões que podem gerar renda, como estamos fazendo aqui em Paraisópolis na Praça da Cidadania. A praça é um espaço público do governo do estado e lá temos atividades que formam as mulheres em cursos como salgadeira, cabeleireiro, maquiagem, corte e costura. São cursos rápidos para que as mulheres possam gerar renda rápida. E a CUFA entra com essa capacitação empreendedora para essas mulheres, para que além de fazer o pão, elas saibam vender o pão, para que elas conheçam as normas sanitárias para produzir e vender pão, por exemplo.

Hoje, em função da pandemia, tivemos que mudar a nossa agenda para uma agenda assistencial. E mobilizar essas mulheres, aqui em Paraisópolis pelo menos, foi uma demanda espontânea. Não foi preciso a gente ir atrás dessas mulheres, elas vieram pedir ajuda e se mobilizando. E a nossa função foi justamente organizar os cadastros, levantar os dados dessas mulheres, entender as necessidades de cada família. A cada nova doação a gente passou a conhecer as necessidades dessas famílias e a direcionar o que elas precisavam. E a cada vez que recebemos novas demandas vamos atualizando esse cadastro, não só em Paraisópolis, mas nas 5 mil favelas de todo o Brasil onde a CUFA está.

Outra questão muito preocupante em relação à vida das mulheres faveladas, foi a violência doméstica durante a pandemia. Nesse sentido, há alguma articulação nos territórios? Como anda a atuação do poder público?

No início da pandemia nós tivemos uma ampla divulgação de um número de telefone, justamente para atender mulheres vítimas de violência. A gente tenta sempre fazer um trabalho de conscientização quando temos a oportunidade de estar pessoalmente com as mulheres. Não é fácil você falar sobre as suas dificuldades e menos ainda que está sendo vítima de alguma violência, por medo de represálias mesmo.

Aqui em Paraisópolis nós passamos a utilizar os momentos de entrega de cestas básicas no campo do Palmeirinha — que é um lugar amplo e a gente conseguia movimentar 2 mil pessoas por dia sem aglomeração ou mitigando a possibilidade de aglomeração — para conversar. A gente sempre utilizou um pedaço desse tempo das entregas para fazer pequenas conversas dando informação e canais através dos quais as mulheres poderiam pedir ajuda. E sempre há uma procura espontânea de mulheres que estão precisando de ajuda.

Nós acabamos desenvolvendo também essa capacidade de ser um pouco assistente social no meio dessa pandemia. A gente recebeu muitos casos de violência que acabamos lidando aqui da melhor forma possível. Como quem trabalha na CUFA mora aqui no território, sempre alguém acaba conhecendo alguém que vai levantar essa informação para saber se essa mulher precisa de uma ajuda a mais. Com essa rede de apoio local a gente conseguiu identificar alguns casos de mulheres que precisam sim de ajuda e a gente indicou o caminho para que elas buscassem as autoridades, abrissem um boletim de ocorrência contra o seu agressor. E dentro do possível, nos casos em que essas mulheres conseguiam viver longe deles, que elas tentassem judicialmente liminares para que esses agressores mantivessem distância.

Só que na prática a gente sabe que isso é muito pouco porque acaba virando só um papel. Elas não têm por parte do governo um apoio de fato. Ela, se sentindo agredida, não tem muito pra onde correr. Mas a gente tenta, dentro do possível, identificar os casos com essa rede de apoio local. Mas, são casos que as mulheres acabam sentindo vergonha quando na verdade elas não têm que sentir vergonha, porque elas são vítimas. Ou, elas se sentem coibidas a não falar. Aqui em Paraisópolis, por exemplo, a gente não tem um departamento de assistência social para receber essa demanda e dar soluções. Então a gente aqui da CUFA que acaba recebendo essa demanda e encaminhando até certo ponto. A violência contra à mulher ainda é muito velada dentro da favela.

Segundo a líder da CUFA, o momento de entrega de cestas básicas também serviu para ouvir das mulheres queixas sobre violência doméstica e de orientação de como elas podem denunciar essas violações – Foto de Daniel de Araujo Ferreira

Nesse momento de pandemia, as mulheres também têm enfrentado dupla e até tripla jornada de trabalho. O que se agrava ainda mais com os filhos que estão em casa e com a pressão de manter os lares funcionando. Como tem sido isso? Essas mães têm recebido ajuda? 

Tem algumas iniciativas nesse sentido que ajudaram. Tem o auxílio financeiro da própria Prefeitura. Eu acompanhei como mãe porque o meu filho está na idade pré-escolar e ele teve direito ao cartão alimentação. No caso dele foi um benefício de R$ 101 — que eu até me surpreendi porque caiu de novo no final de fevereiro, acho que porque ele não está indo para a creche. Mas, eu percebi que muitas mães aqui reclamaram da quantia de R$ 55. Esse recurso merenda tem feito diferença principalmente quando somado ao Bolsa Família, porque o valor passa a ser mais relevante. Mas, sozinho, tem mães reclamando do valor.

Já em termos de educação, as próprias professoras das creches daqui de Paraisópolis tiveram que se reinventar e começar a entregar atividades para que os pais façam com as crianças em casa. Tem sido de grande utilidade isso.

E tem alguns programas digitais como o programa Alicerce, que também tem atuado na educação das crianças e dando conteúdo. Só que aqui a gente esbarra na questão da conectividade. Como é que as crianças vão se conectar se as mães não têm acesso à internet? Um dos meios que encontramos aqui na CUFA para suprir essa lacuna da conectividade foi o chip das Mães da Favela. Nós entregamos milhões de chips pelo Brasil para ajudar essas mães a se conectarem e a conectarem seus filhos com os meios de educação.

O auxílio emergencial foi de grande ajuda para essas mães, principalmente porque no início da pandemia elas recebiam o dobro, um valor de R$ 1,2 mil. Qual o impacto da falta do auxílio?

A renda mínima é necessária para garantir o mínimo de dignidade, sem ela mais pessoas vão começar a passar fome. As pessoas estão realmente desesperadas ao projetarem os possíveis cenários de um futuro próximo. Estamos com um déficit de 14 milhões de empregos no Brasil e a tendência é só aumentar, cada vez que a gente precisa fechar a economia. A gente fecha a economia e as pessoas não morrem de covid nas ruas, mas estão arriscadas em pleno 2021 a morrerem de fome.

Na sua opinião, o governo falhou em atender a população?

As respostas do governo foram muito demoradas e muitas delas ainda são insuficientes para o que a favela precisa. Vide o valor cada vez mais reduzido do auxílio emergencial, por exemplo. A gente precisa realmente dar espaço e voz aos movimentos sociais e lideranças dentro das favelas do Brasil e que sempre responderam com muita pertinência e conhecimento de causa às demandas da favela. Identificando rapidamente essas demandas e trazendo respostas muito rápidas e eficientes. O governo precisa cada vez mais ouvir o terceiro setor, as favelas, que tiveram respostas mais rápidas e eficazes.

 

 

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