Por Frei Clarêncio Neotti
A palavra miséria (mísero, miserável) e a palavra misericórdia são parentes próximas. Em ambas, está a raiz latina miser (pobre, necessitado). Em misericórdia, acrescenta-se a palavra cor (coração). A palavra misericórdia sugere duas direções de sentido, ambas ativas. Primeira, misericórdia = um coração voltado para o necessitado. Segunda, misericórdia = um coração necessitado voltado para quem pode socorrê-lo. No primeiro sentido, tenho misericórdia, quando eu me abro e volto-me para o necessitado. No segundo sentido, há misericórdia quando eu, necessitado, volto-me para quem me pode socorrer. Isso significa que o egoísta (voltado para os seus interesses) e o orgulhoso (autossuficiente) jamais compreenderão a misericórdia.
No primeiro sentido, Deus é o mais misericordioso de todos, chegando a amar os ingratos e os maus (Lc 6,35) e a ponto de se poder dizer: Deus é a misericórdia. Infinito é seu amor, infinita é sua misericórdia. Observe-se como na parábola de hoje ele sai ao encontro do filho. É verdade que o filho voltava arrependido. Mas o pai não lhe pede contas, não lhe impõe condições, não testa sua sinceridade, não se importa pelo que dirão ‘os outros’ (o filho mais velho é um exemplo de escandalizado). Simplesmente o abraça e, nesse abraço, acontece o perdão, lindamente simbolizado na “túnica mais preciosa” (v. 22), com que mandou vesti-lo, e a festa que mandou fazer.
No segundo sentido, a criatura humana é a mais beneficiada pela misericórdia, sempre que se põe em seu devido lugar de criatura dependente de Deus. A parábola de hoje ilustra bem a verdadeira misericórdia e seus contrários. Bastaria comparar a atitude do Pai com a do filho mais velho, cumpridor de todos os deveres e respeitoso do pai e de seus bens. Em outras palavras, não basta observar os mandamentos (os fariseus também os observavam). É preciso ter misericórdia. Talvez podemos dizer que o Antigo Testamento se fundamentava na observância da Lei, e o filho mais velho bem podia ser o exemplo dessa observância sincera. O Novo Testamento dá um largo passo avante: além de observar a lei, devemos ser “ricos em misericórdia” (Ef 2,4), e o pai da parábola de hoje é o grande e justo modelo. Foi o próprio Jesus quem disse: “Sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso” (Lc 6,36).
Fonte: Franciscanos
FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFM, entrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.