Lampedusa 10 anos depois: o clamor incessante do Papa Francisco

Imagem: reprodução / O lançamento de uma coroa de flores: a imagem simbólica da visita do Papa a Lampedusa - (Vatican News)

 

Ruffini: o Papa em Lampedusa nos ensinou a olhar com o coração, sem slogans

O prefeito do Dicastério para a Comunicação está na ilha siciliana para participar de uma conferência no dia do décimo aniversário da visita do Papa Francisco.  Era 8 de julho de 2013, o pontificado havia começado há menos de 4 meses e a viagem será lembrada como a primeira de Bergoglio, significativamente não programada

“A memória permite-nos compreender o presente, quando falamos de migrações somos chamados a não simplificar, a rejeitar slogans fáceis, comprometendo-nos a ver com o coração e a ir além de qualquer programa, respondendo às urgências da história”.

É o que afirma Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério para a Comunicação, que se encontra em Lampedusa para participar na conferência intitulada “Da guerra à migração, narrar a crise e a Europa por vir”, agendada para sábado, 8 de julho, no aeroporto da ilha. Inserido no âmbito do Prêmio Internacional de Jornalismo Cristiana Matano, agora na sua oitava edição, o evento realiza-se no dia do décimo aniversário da viagem do Papa a Lampedusa, a primeira do seu pontificado. Uma viagem não planejada, em que Francisco dava um sinal tangível daquele que seria um tema central do seu magistério e é daqui que começa a recordação de Ruffini.

O que Francisco nos disse com esta viagem, dez anos atrás?

Podemos dizer que o Papa Francisco nos habituou e também nos ensinou por meio do seu exemplo que nem tudo tem de ser programado. Nossas vidas devem ser marcadas pela capacidade de ver, de ouvir com o coração. Isso vale para todos aqueles que devem contar o que veem, não apenas para nós, jornalistas. Ouvir e ver com o coração significa ter a capacidade de acompanhar o que está acontecendo mesmo que não esteja planejado. É a parábola do bom samaritano: tens de fazer alguma coisa, encontras outra que te interroga, te interpella, te fere. O Papa falou a Lampedusa de “um espinho no coração”. Francisco deu este sentido ao pontificado: tantas coisas não eram previstas, mas dependiam da urgência dos acontecimentos. O que acontece nem sempre é programável, os fatos são superiores às ideias.

Voltando o olhar para trás dez anos, hoje é fácil entender como aquela viagem marcou o magistério de Francisco sobre os migrantes, “números e nunca pessoas”, como no Mediterrâneo, várias vezes chamado de “cemitério”. A quem a voz do Papa questiona hoje, por quem é ouvida, a que consciências se dirige?

Costuma-se dizer que a voz do Papa grita no deserto, mas na realidade todos nós a ouvimos. No entanto, nem todos estamos sempre à altura do que ouvimos. Este é o destino dos profetas, mas o que você semeia permanece e os frutos vêm com o tempo. Há quem ouve mais, outros menos. Se olharmos para o magistério dos predecessores de Francisco, isso é uma constante. Penso, por exemplo, no discurso de Paulo VI aos jornalistas católicos sobre a guerra, proferido em 1966. Falava da sua proposta de paz relativa ao Vietnã. Dizia que algumas coisas não se entendiam, pareciam estranhas, um pacifismo utópico, mas reivindicava o seu direito de apresentar um testemunho claro, aquele de quem diz ao mundo que a paz é possível, mas requer paciência. Dez anos mais tarde, mais ou menos, terminou a guerra do Vietnã. Há tempo de semear e tempo de colher. A pergunta sobre quem escuta então é justa e deve ser dirigida a nós: quanto nós o ouvimos, crentes e não crentes? Acho, repito, que todos o ouvimos, conhecemos bem as suas palavras sobre a necessidade de compreender que os processos em curso dizem respeito à guerra, à economia, à ecologia. Tudo está interligado, inclusive a questão da migração. Se pegarmos as coisas aos pedações, estaremos dentro de uma guerra em pedaços, se ao invés pensarmos grande iniciaremos um processo que nos levará a uma época melhor. Por outro lado, prevalecerá o descarte, o fim do bem-estar. Nesta era da comunicação, muitas coisas ouvidas são removidas na ilusão de que se possa sair dos problemas sem vê-los, ao contrário, é necessário observá-los e enfrentá-los.

Como se pode então comunicar da melhor forma uma viagem como a de Lampedusa e qual a importância de recordar o que aconteceu há dez anos?

Se não nos recordamos, não sabemos nem mesmo onde estamos. A importância da memória é crucial para o futuro, não para o passado. A memória é essencial para o bom jornalismo, para qualquer um que comunica – mesmo nas redes sociais – tem o dever de compartilhar a memória, de literalmente guardar experiências. Como comunicar tal viagem? Não recorrendo a estereótipos, não simplificando, mas assumindo a complexidade da realidade. Estamos acostumados a pensar que existem respostas simples para questões complexas. Você é contra ou a favor da imigração? Isto não é uma pergunta. O tema é como administrar o fenômeno migratório que sempre existiu na história do mundo. Precisamos pensar em como trabalhar por uma governança dos processos migratórios baseada no respeito aos direitos das pessoas, em uma integração que faça com que as culturas coexistam em diálogo recíproco. São questões complexas, que não podem ser resolvidas com slogans brandindo-as umas contra as outras. Isso requer mais esforço, mas também mais beleza. Este é o encontro, o diálogo, a história. Quando se narra Lampedusa, a viagem do Papa, se se consegue assumir esta complexidade evitando os slogans, fala-se com o coração, cria-se uma partilha que leva a mudar realmente as coisas.

Andrea De Angelis – Cidade do Vaticano

Lampedusa 10 anos depois: o clamor incessante do Papa Francisco

Desde Lampedusa, nestes dez anos nunca esmoreceu a luta do Papa por justiça para com os migrantes mundo afora. E o fez com discursos e exortações pungentes, desmascarando as raízes do problema, denunciando as desigualdades e oferecendo soluções. Mas o fez também com gestos de ternura, indo ao encontro desses nossos irmãs na fronteira entre México e Estados Unidos, Mianmar e Bangladesh, Moçambique, Sudão do Sul, Iraque, Chipre, Grécia, Polônia…

No dia 8 de julho de dez anos atrás, o Papa surpreendeu os fiéis ao realizar a primeira viagem de seu pontificado. O destino escolhido foi a ilha de Lampedusa, extremo sul da Itália.

O anúncio da visita foi feito somente sete dias antes, para que se realizasse de maneira “sóbria e discreta”, como anunciou na época o então diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé. Francisco havia ficado impressionado com um naufrágio ocorrido no canal da Sicília e o motivo era claro: manifestar sua proximidade aos migrantes que tinham conseguido atravessar o Mediterrâneo e chorar por aqueles que morreram na travessia.

Dez anos se passaram desde aquele dia e o sonho de uma vida mais digna fez incontáveis vítimas, cerca de 26 mil. Demasiadas, a ponto de o Pontífice chamar o “Mare nostrum” de cemitério. A gestão dos países interessados pouco mudou, mas mudou de certa forma o olhar da Igreja em relação a este fenômeno. Francisco institui uma Comissão especializada no assunto no Vaticano, que trabalha junto a organizações internacionais defendendo políticas migratórias baseadas em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Mas não só: o Papa mobilizou congregações e paróquias para abrirem suas casas praticamente inutilizadas por falta de vocações e seu pedido foi amplamente atendido.

Mas o que impressiona é que nestes dez anos nunca esmoreceu a luta do Papa por justiça para com os migrantes mundo afora. E o fez com discursos e exortações pungentes, desmascarando as raízes do problema, denunciando as desigualdades e oferecendo soluções. Mas o fez também com gestos de ternura, indo ao encontro desses nossos irmãs na fronteira entre México e Estados Unidos, Mianmar e Bangladesh, Moçambique, Sudão do Sul, Iraque, Chipre, Grécia, Polônia…

E nunca se cansa de repetir: “Os migrantes não são números, mas pessoas”. E é deste encontro olho no olho que vem a lembrança do próprio Pontífice da viagem realizada 10 anos atrás: 

“Lembro-me daquele dia… Algumas pessoas contaram-me as suas histórias, como tinham sofrido para lá chegar. E havia intérpretes. Um deles contou coisas terríveis na própria língua, e o intérprete parecia traduzir bem, mas falava muito e a tradução era curta. ‘Bem — pensei — vê-se que nesta língua há mais rodeios de palavras para se expressar’. Quando voltei para casa, à tarde, na recepção havia uma senhora — que a paz esteja com a sua alma, ela já se foi — que era filha de etíopes. Compreendia a língua e tinha assistido ao encontro pela televisão. E disse-me o seguinte: ‘Ouça, aquilo que o tradutor etíope lhe disse não é sequer a quarta parte das torturas, dos sofrimentos que eles padeceram’. Deram-me a versão ‘destilada’. É o que acontece hoje com a Líbia: passam-nos uma versão ‘destilada’. Sim, a guerra é horrível, sabemo-lo, mas não podem imaginar o inferno que se vive lá, naqueles lagers de detenção. E aquelas pessoas vinham apenas com a esperança de atravessar o mar.”

Bianca Fraccalvieri – Vatican News

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