Uma das características do tempo da Quaresma, é a penitência, sobretudo no comer e no beber.
Trata-se de uma observância tão marcante, que o tempo quaresmal, efetivamente, tem mais de quarenta dias para que, descontados os domingos, nos quais nunca se faz penitência, feche-se a conta exata de quarenta dias de penitência no alimento, contando-se deste a Quarta-feira de Cinzas até o Sábado Santo, encerrando-se a penitência quaresmal com a Vigília Pascal.
Esta penitência nos alimentos pode consistir numa simples abstinência, que é renúncia a algum alimento, ou pode chegar ao jejum, que consiste no privar-se das refeições de modo total ou parcial. É muito importante a prática de tal forma de penitência. Aliás, eram o jejum e a abstinência que, na Igreja Antiga, davam uma fisionomia própria ao tempo quaresmal.
Mas, por que jejuar? Por que se abster de alimentos?
É necessário compreender o sentido profundo que o cristianismo dá a essas práticas, para não ficarmos numa atitude superficial, às vezes até folclórica ou, por ignorância pura e simples, desprezarmos algo tão belo e precioso no caminho espiritual do cristão.
O jejum e a abstinência têm quatro sentidos muito específicos e claros:
(1) O jejum nos ensina que somos radicalmente dependentes de Deus.
Na Escritura, a palavra nephesh significa, ao mesmo tempo, “vida” e “garganta”. A ideia que isso exprime é que nossa vida não vem de nós mesmos, não a damos a nós próprios; nós a recebemos continuamente: ela entra pela nossa garganta, com o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que respiramos.
Jamais o homem pode pensar que se basta a si mesmo, que pode se fechar para Deus e, sem Ele, ser o gerador, o provedor e o dono da sua vida! Este é o grande pecado da cultura atual, do mundo em que vivemos: um homem que se julga um deus!
Quando jejuamos, sentimos uma certa fraqueza e lerdeza; às vezes, nos vem mesmo um pouco de tontura. Isso faz parte da “psicologia do jejum”: recorda-nos o que somos sem esta vida que vem de fora, que nos é dada por Deus continua e gratuitamente. A prática do jejum, impede-nos, então, da ilusão de pensar que a nossa existência, uma vez recebida, é autônoma, fechada, independente. Nunca poderemos dizer: “A vida é minha; faço como eu quero!” A vida será, sempre e em todas as suas etapas, um dom de Deus, um presente gratuito, e nós seremos sempre dependentes Dele.
Esta dependência nos amadurece, nos liberta de nossos estreitos e mesquinhos horizontes, nos livra da ilusão da autossuficiência e nos faz compreender “na carne” nossa própria verdade, recordando-nos que a vida é para ser vivida em diálogo de amor com Aquele que no-la deu.
(2) O alimento é uma de nossas necessidades básicas, um de nossos instintos mais fundamentais, juntamente com a sexualidade. A abstenção do alimento nos exercita na disciplina, fortalecendo nossa força de vontade, aguçando nossa capacidade de vigilância e dando-nos a capacidade para uma verdadeira disciplina.
Nossa tendência é ir atrás de nossos instintos, de nossas tendências, de nossa vontade desequilibrada. Aliás, essa é a grande fraqueza e o grande engano do mundo atual. Dizemos: “não vou me reprimir; não vou me frustrar”, e vamos nos escravizando aos desejos mais banais e às paixões mais contrárias ao Evangelho e ao amor pelo próximo.
O próprio Jesus, de modo particular, e a Escritura, de modo geral, nos exortam à vigilância e à sobriedade. O jejum e a abstinência, portanto, são um treino para que sejamos senhores de nós mesmos, de nossas paixões, desejos e vontades. Assim, seremos realmente livres para Cristo, sendo livres para realizar aquilo que é reto e desejável aos olhos de Deus! O próprio Jesus afirmou que quem comete pecado é escravo do pecado! Não adianta: sem o exercício da abstinência, jamais seremos fortes. Não basta malhar o corpo; é preciso malhar o coração! Salta aos olhos o quanto vivemos num mundo de imaturos, de fracos, que pensam que o mundo tem que se dobrar aos seus caprichos, vícios e ilusões…
(3) O jejum tem também a função de nos unir a Cristo, no Seu período de quarenta dias no deserto: quaresma de Cristo, quaresma do cristão.
Faz-nos, assim, participantes da Paixão do Senhor, completando em nós o que faltou à Cruz de Jesus e completando o que faltou em nós da Cruz do Senhor. O cristão jejua por amor a Cristo e para unir-se a Ele, trazendo na sua carne as marcas da Cruz do Senhor.
Trata-se de uma união com o Senhor que não envolve somente a alma, com seus sentimentos e afetos, mas também o corpo. É o homem todo, a pessoa na sua totalidade que se une ao Cristo.
Nunca é demais recordar que o cristianismo não é uma religião espiritualista, religião simplesmente da alma, mas atinge o homem em sua totalidade. Pelo jejum, também o corpo reza, também o corpo luta para colocar-se no âmbito da Vida nova de Cristo Jesus. Também o corpo necessita, como o coração, ser esvaziado do vinagre dos vícios para ser preenchido pelo mel, que é o Espírito Santo de Jesus. Jejuar, praticar a abstinência de alimentos é trabalhar para colocar o corpo debaixo do senhorio do Cristo Jesus!
(4) Finalmente, o jejum e a abstinência, fazem-nos recordar aqueles que passam privação, sobretudo a fome, abrindo-nos solidariamente para os irmãos necessitados. Há tantos que, à força, pela gritante iniquidade e pelo egoísmo do coração humano, jejuam e se abstêm todos os dias, o ano todo! O jejum nos faz sentir um pouco a sua dor, tão concreta, tão real, tão dolorosa!
Por isso mesmo, na tradição mística e ascética da Igreja, o jejum e a abstinência devem ser acompanhados sempre pela esmola: aquele alimento do qual me privo, já não é mais meu, mas deve ser destinado ao pobre. É por isso que os pobres, ainda hoje, em algumas regiões, nos dias de jejum, pedem nas portas o “meu jejum”. Eis o jejum perfeito: ele me abre para Deus e para os irmãos. Neste ponto, é enorme a insistência seja da Sagrada Escritura, seja dos Padres da Igreja (os santos doutores dos primeiros séculos do cristianismo).
Assim, que nossa abstinência quaresmal, que nosso jejum, sejam regados com gestos concretos de solidariedade, de afeto, de preocupação, de ações concretas em relação aos pobres, aos necessitados deste mundo!
Resta-nos, agora, passar da teoria à prática!
Seja a nossa Quaresma rica do jejum e da abstinência, enriquecidos com o bem da caridade fraterna, da esmola, que se efetivam na atenção e preocupação ativa e concreta pelos pobres de todas as pobrezas.
Por Dom Henrique Soares da Costa – foi bispo da Diocese de Palmares/PE (faleceu em 2020, vítima da covid-19)