Por Frei Almir Ribeiro Guimarães
1. Todos os discípulos de Cristo devotamos uma especial veneração pelo seu lado aberto no alto da Cruz. Não somos cristãos da sexta-feira das dores, mas do domingo da ressurreição. Isto não impede que, em nossa contemplação do mistério de Cristo, nos demoremos em olhar seu lado aberto. Foi o evangelista João que nos transmitiu de maneira toda própria as coisas que aconteceram no alto da cruz. Os judeus não queriam que os condenados ficassem na cruz. Pediram a Pilatos que fossem quebradas as pernas dos crucificados e que seus corpos fossem retirados. Isto fizeram com os dois malfeitores que haviam sido crucificados com ele. “Quando chegaram, porém, a Jesus e viram que estava morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados traspassou-lhe o lado e logo saiu sangue e água” (João 19, 33-34).
2. A cena da crucificação é fundamental. Um homem jovem não consegue escapar da morte violenta e injusta. Injunções e circunstancias tornam-no sem defesa. Não se tratava de uma mera fatalidade, mas na coerência levada até o fim. Uma vida truncada. Uma existência eliminada. Morte… a morte…sempre a presença da morte. Os próximos mais próximos se vão. Reina o medo. Impera a covardia. Ele, elevado da terra, entre a terra e o céu. Seu peito arfa, seus olhos se movem, seus braços e penas se estiram para não sentir a dormência…O Menino das Palhas, o jovem rabi está atado, sujo, com suor, catarro no rosto, abandono em todos os sentidos. Parece mesmo que o Pai, o Pai do Tabor e do Jardim de Gestsêmani estava distante, muito distante. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”
3. Há o momento dos momentos. O condenado sente-se asfixiado. Tudo incomoda. O fim se avizinha. Jesus reúne ainda na tona de sua vida tudo o que vivera, lembra-se da missão e compreende de maneira extremamente existencial: “Não existe maior amor do que dar a vida por seus irmãos”. Estava na hora. Era a hora das horas. Pronto. “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. Não existe nada mais belo, mais redentor, mais nobre, mais essencial do que o dom do amor. O mais belo de todos os filhos dos homens, o menino das palhas, o Verbo de Deus tornado carne, entrega-se, ama, redime, restaura. Mas João ainda chama atenção para o golpe da lança.
4. Houve a morte… mas logo, imediatamente, saiu sangue e água. Depois da morte, logo a vida. Anúncio da ressurreição? Somos convidados a contemplar todo o mistério da páscoa na cena última do Calvário. Contempla-se “um coração morto e ferido pela morte, mas um coração que, do mais profundo da morte, no próprio instante em que é aniquilado, deixa prorromper uma fonte de vida, água e sangue, sinais a ressurreição. Como disse Orígenes, o novo Adão adormecido sobre a cruz, ‘não foi como os outros mortos, mas do mais profundo da morte, manifestou sinais de vida na água e no sangue e foi, por assim dizer, um morto novo”. Importante captar a radical novidade do acontecimento que se realiza apontando para o antigo sono. Ele constitui um dos sinais de João. Aquele cadáver suspenso no maldito madeiro já é o corpo do ressuscitado” (É. Glotin, Il m’a aimé, Paris, Apostolat des éditions, 1979, p. 17-22).
5. No lado aberto, a tensão entre morte e vida é evidente. João diz logo, imediatamente saiu sangue e água. O texto marca a continuidade. Opera-se uma dupla ação histórica e simbólica. De um lado a transfixação que constitui o último rito de imolação praticado no verdadeiro Cordeiro pascal. Havia uma profecia que dizia que nenhum de seus ossos seriam quebrados. E, de outro lado, a abertura da fonte da água viva que representa a primeira efusão do Espírito, profetizada pelo próprio Jesus: “No último dia, o mais importante da festa, Jesus falou de pé e em voz alta: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva. Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem nele. De fato, ainda não tinha sido dado o Espírito porque Jesus ainda não tinha sido glorificado” (Jo 7, 27-39). Este acontecimento, paradigma de toda efusão vital do Espírito, se dá no momento em que Jesus passa desse mundo para o Pai. Morrendo na fraqueza da carne, Jesus efunde o Espírito.
Texto inspirado no livro Il cuore di Cristo e i suoi simboli, Charles André Bernard, Ed. AdP, AdP, Roma, 2008, p. 39-41).
Fonte: Franciscanos