Escutando os sons da sinagoga de Nazaré
Por Frei Almir Guimarães
Os pobres são o grande desafio para nós que somos seguidores de Jesus. Podemos continuar discutindo sobre a moral sexual, os preservativos ou o sacerdócio da mulher. Mas o Espírito de Jesus continuará nos interpelar a todos nós a partir do sofrimento dos desempregados, dos pobres e dos famintos. Só ele nos pode sacudir de nossas fáceis “ortodoxias” de direita ou de esquerda.
José Antonio Pagola – O caminho aberto por Jesus, Lucas; Vozes, p. 83
>> “E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da lei”. Um domingo que fala da escuta, da necessidade de fazer com que nossos ouvidos externos e internos prestem atenção às falas essenciais da vida. Ouvimos a voz dos outros, a leitura de declarações e documentos de manifestos reivindicativos , o alarido das praças públicas, os vídeos enviados para nossos celulares. Ouvimos a voz das pessoas à nossa volta. Até que ponto somos capazes de ouvir o som das vozes dos outros e os gritos sem som estampados nos rostos das pessoas, o brado da terra que foi se tornando árida e leitos dos rios nada mais que caminhos transitáveis a pé enxuto A grande pergunta que se faz hoje em nossa liturgia é: “Estamos em condições de ouvir a voz do mundo e a voz do Senhor?” A liturgia nos fala do reencontro do Livro do Lei. “E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei”. Os frequentadores da sinagoga de Nazaré, por sua vez, ouviram o programa da missão de Jesus, programa repetido hoje aos nossos ouvidos.
>> Escutar… a audição é uma atitude profundamente humana. Não vivemos sozinhos. Formamos uma comunidade de vida. Ouvimos a expressão das necessidades dos outros. Acolhemos suas palavras de apoio, de encorajamento, de dor, de alegria. Somente assim criamos laços. Os sons penetram em nosso ser e se transformam em atenção, delicadeza, ajuda, jubilo. Escutar é mais do que ouvir fonemas. “A escuta talvez seja o sentido de verificação mais adequado para acolher a complexidade do que uma vida é. Contudo escutamo-nos tão pouco e, dentre as competências que desenvolvemos raramente está a arte de escutar. Na Regra de São Bento há uma expressão essencial, se queremos perceber como se ativa uma escuta autêntica. “Abre o ouvido do teu coração”. Quer dizer a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, com o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha do discurso sonoro. Antes de tudo é atitude, é inclinar-se para o outro, é disponibilidade para acolher o dito e o não dito, o entusiasmo da história ou o seu avesso, a sua dor” (José Tolentino Mendonça, A mística do instante, Paulinas, p. 107).
>> Somos sempre convidados a ouvir a Palavra da Escritura. Veneramos os textos tanto do Antigo quanto do Novo testamento. Ao longo de milênios os fiéis se reúnem em torno do Livro que tem vida, livro de vida.. Não se trata apenas de uma leitura ilustrativa e curiosa de belos ou de intrincados textos. Trata-se de captar como os escritores sacros colocaram por escrito uma leitura de fé dos acontecimentos. Lemos as Escrituras em nossas casas, ouvimos trechos dos profetas, dos sábios, de historiadores onde aparecem intervenções do Senhor ontem e que podem ser aplicadas aos nosso tempos. À luz do Espírito são dirigidas a nós as palavras de Ezequiel sobre os bons e maus pastores, os lamentos de Jó e a imensa alegria do Pai do filho pródigo.
>> Em nossos tempos se insiste na Leitura orante da Bíblia (lectio divina). “Audição” em particular, mas de modo especial esse exercício comunitário de ouvir juntos Palavra. Palavra ouvida e explicada no seio da celebração eucarística. Palavra que acompanha o ritual dos sacramentos. Ela mesma nos pede que não fechemos o nosso coração. A Palavra assimilada, desejada, buscada ilumina os nossos passos. Belas as posturas do autor do salmo 118 que elogia a Palavra. Até que ponto ao longo de nossa vida estamos adquirindo uma familiaridade com a Palavra?
>> Na leitura do evangelho deste domingo Jesus vai á sinagoga de sua terra. Pedem-lhe que faça a leitura. Eles escolhe uns versículos de Isaías. Fala-se de um personagem consagrado para anunciar a boa nova aos pobres, libertar os cativos, abrir a vista dos cegos e dar firmeza às pernas dos trôpegos. Terminada a leitura Jesus senta-se. Os olhos de todos estão fixos nele. Guardamos sempre na memória e no coração as palavras de Jesus: “Hoje se cumpriu esta passagem das Escrituras que acabaste de ouvir”.
>> O projeto de Jesus é anunciar um caminho novo de vida a todos. Uma força do alto toma conta dele. No seu Batismo uma voz irrompera dos céus e dissera: “Este é o meu Filho amado, escutai-o”. Jesus não cessará de falar, de proclamar os desejos do Pai, de indicar as linhas da construção de um mundo novo. O que ele deseja é que seus ouvintes tenham vontade de ouvir e não se fechem. Quando o som chega até nossos ouvidos podemos nos desinteressar e ouvir sem ouvir. Domingo após domingo chega até nós Evangelho da missa, difícil ou fácil, mas palavra de Jesus que nos é dirigida para iluminar os passos que temos que dar na arte de existir aqui e agora.
>> Quando Jesus terminou de ler a passagem de Isaías afirma que nele se realiza a palavra do Profeta. Jesus e seus discípulos andarão mundo a fora a buscar os mais sofridos pela vida, os que nada possuem senão o desejo de sobreviver um pedaço de pão e um prato de feijão. O projeto de Jesus é abrir os olhos dos cegos, dar luz a uns e outros para enxerguem o sentido da vida. Convida os seus a se serem libertadores de amarras na maneira de viver o casamento e a família, a anunciarem uma luz nova na maneira de usar e de partilhar os bens, na busca de uma justiça verdadeira que faça do mundo um espaço de fraternidade. Jesus veio para isso e os olhos de todos se fixaram nele.
>> “O sentido da escuta tem a ver com prontidão. Aquele que escuta constrói uma vigilância interior que lhe permite atuar com diligência que não deixa de surpreender. É essa a imagem dos atletas, no início da partida, prontos à espera do sinal. A qualidade da escuta determina a qualidade da resposta” (José Tolentino Mendonça, op. cit. p. 117).
Oração
Jesus, Senhor do amor e da ternura,
fala-nos mais uma vez deste projeto
que tu chamas Reino de Deus.
Diz-nos que ele existe,
que ele está aqui,
ainda que seja singelo,
ainda que seja pequeno
como um grão de mostarda.
Dize-nos que o Reino
é a coisa mais limpa e bela
que podemos sonhar,
que ali não haverá pranto nem pobreza,
nem enganos, nem opressão.
Dize-nos que o reino
é a utopia realizada,
o cumprimento de tudo o que se deseja
o coração humano.
E ensina-nos também
o caminho que leva a ele.
Dize-nos mais uma vez
que Tu és o caminho
dos pobres e dos humildes,
da solidariedade e da misericórdia
da não violência e do amor.
Repete-nos mais uma vez
que todos os caminhos
são um só caminho
Fonte: Franciscanos
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, ingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.