Por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]
O evangelho de Maria Madalena, a mulher que não foi prostituta, mas apóstola da primeira hora do cristianismo, é, com grande probabilidade, um texto fundador do cristianismo.[2]
Ele foi encontrado em dois papiros escritos em grego, datados nos séculos II e III, e outro traduzido do grego do ano 150 E.C para o dialeto copta saídico, no séc.V. Esse papiro foi descoberto no Alto Egito, em 1945, na biblioteca de Nag-Hammadi. Ele está organizado em forma de páginas, faltando as de números 1 a 6 e 11 a 14.
O objetivo principal do evangelho de Maria Madalena é o de reagir contra a institucionalização do cristianismo na linha hierárquica e masculina. Jesus esteve sempre próximo das mulheres, dos pecadores e enfermos, conforme atestam os evangelhos canônicos, os quais, por outro lado, minimizaram a liderança de mulheres apóstolas, como Maria Madalena.
As discussões teológicas entre Maria Madalena, Pedro, Levi e André sobre a pessoa de Jesus e as revelações que Ele fez a Maria Madalena, narradas no evangelho de Maia Madalena, são de fundamental importância para compreender as disputas entre as lideranças cristãs sobre o papel das mulheres no cristianismo no fim do século primeiro e durante o segundo.
Vamos ler e interpretar o Evangelho de Maria Madalena tendo em vista o diálogo com esses textos primitivos com objetivo de beber dessa fonte de espiritualidade a partir da leitura de gênero, isto é, a relação de poder entre o homem e a mulher.
O evangelho gnóstico de Maria Madalena começa com as seguintes palavras: [3]
1(…) “O que é a matéria? 2Ela durará sempre?” 3O Mestre respondeu: 4“Tudo o que nasceu, tudo o que foi criado 5todos os elementos da natureza 6estão estreitamente ligados e unidos entre si. 7Tudo o que é composto se decomporá; 8Tudo retornará às suas raízes: 9A matéria retornará às origens da matéria. 10Que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Assim como nessa passagem, em todo o evangelho, Maria Madalena repassa os ensinamentos do Mestre Jesus para os apóstolos.
O comentário completo dessa passagem encontra-se em nossa página: www.bibliaeapocrifos.com.
“O que é a matéria? 2Ela durará sempre?” O texto começa com perguntas. Perguntar é já a arte de aprender. Quem pergunta já sabe a resposta, diz a sabedoria popular. Perguntar pela durabilidade da matéria é afirmar que ela não é eterna. Tudo passa, tudo passará. “Não existe nada de novo debaixo do céu”, escreveu o autor de Eclesiastes (1,9).
O mestre respondeu. O mestre é aquele que pergunta e responde, mas que também deixa o aprendiz encontrar a sua resposta. No judaísmo temos o pai espiritual e o carnal. Mais vale o pai espiritual, pois esse conduz o discípulo para a vida em Deus. Ele é o mestre. Jesus aqui é chamado de mestre. Segundo o testemunho da comunidade joanina (Jo 20,16), Maria Madalena chamou Jesus de Rabbuni, que em hebraico quer dizer: meu Mestre. E poderíamos acrescentar: amado, pois Rabbuni era o modo como a mulher chamava o seu marido. Assim, chamar alguém de meu mestre era já afirmar um carinho especial por alguém. No mundo antigo temos escolas em torno a um mestre, os quais, no judaísmo, eram chamados de Rabino. Jesus foi um rabino e ensinava como um deles. Muitos de seus ensinamentos são também encontrados em textos dos mestres do judaísmo, como, por exemplo, Hillel, o qual, possivelmente, Jesus terá conhecido pessoalmente. O mestre, no texto de MM, é aquele que nos tira da ignorância, reconduzindo-nos ao caminho do Sagrado.
Tudo o que nasceu… ligados entre si. O mestre ensina que na natureza tudo está ligado entre si. Nada vive separado. Todos dependemos de todos. Em nossos dias assistimos a uma degradação rápida da natureza. O Papa Francisco alerta-nos que somos todos irmãos, integrando ser humano e cosmos. Ser humano e natureza salvam-se juntos. Urge “reumanizar o humano e reabitar a terra. Isso só será possível quando homens, animais e natureza conseguirem viver em harmonia”.[4] Retornar à origem é voltar para Deus, nossa origem integradora.
Tudo o que é composto se decomporá. Nada é eterno. Somente Deus permanecerá para sempre. Nada que é composto, matéria, é absoluto. Falando a partir da condição humana, no absolutismo reside a origem de muitos dos nossos sofrimentos. Achamos que as pessoas e seus modos de proceder e pensar são absolutos. Uma opinião será sempre uma opinião, mesmo que ela passe a ser uma decisão. Pode demorar dias e até anos para a conclusão chegar e outra opinião será formada: Não é que eu estava equivocado? Não é que eu estava certo? O mestre, em MM, ensina-nos a não absolutizar o relativo e não relativizar o absoluto. Libertar-se desse modo de agir confere-nos a liberdade do ser.
Tudo retornará a suas raízes: a matéria retornará às origens da matéria. Voltar às raízes significa voltar ao princípio de cada ser, na sua dignidade de filho e filha de Deus. Jesus é raiz no evangelho de MM. Ele tudo integra. Ele, o ressuscitado, é o princípio e o fim de tudo e de todos. Viver nele é o mesmo que encontrar a dignidade perdida.
Que aquele que tem ouvido para ouvir, ouça. A fala do Mestre, como nos evangelhos sinóticos, é enigmática. Quem tem ouvidos para ouvir ouça. E quem tem ouvido, mas não sabe ouvir, que aprenda. Ouvir não é fácil. Tem gente que pensa que ouve, mas não ouve. Ouvir exige uma disposição para tal. A diferença dos judeus cristãos que também precisaram ver o Jesus ressuscitado e seus milagres, Israel se pautou pelo ouvir. Qual israelita não conhece o Shemá Israel (Ouve, ó Israel)? Shemá significa ouvir e ouvir é o mesmo que interpretar a Torá oral e escrita. [5] A Torá sem ser comentada é morta. É um texto de vida. O segredo, ao comentar a Torá escrita, está em ligá-lo com a Torá oral. As homilias, pregações ou sermões em nossas Igrejas deveriam seguir esse princípio judaico de interpretação. Portanto, a homilia bem-feita é a que está em sintonia com a vida. Os judeus chamam homilia de Midraxe. O método usado por Jesus para falar da presença de Deus foi esse. Ele sempre falava a partir da vida em forma de parábolas, comparações com as situações do cotidiano da vida.
O ouvir nessa passagem do evangelho de Maria Madalena consiste em entender que tudo retornará às suas origens. Na continuidade do evangelho, isso ficará mais evidente.
Fonte: franciscanos.org.br
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos
[2] LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de Maria: Miriam de Mágdala, Petrópolis: Vozes, 1998 p. 9.
[3] FARIA, Jacir de Freitas. As origens apócrifas do cristianismo: comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 3 ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 47.
[4] FARIA, Jacir de Freitas. O mito do dilúvio contado pelos Maxakalis, israelitas e babilônios – No conto um projeto que salva a terra, água, animais e seres humanos. Petrópolis, Estudos Bíblicos n. 68, 2000, p. 41.
[5] FARIA, Jacir de Freitas. A releitura do Shemá nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos. Petrópolis, RIBLA, n. 40, 2001.