Não podemos esquecer que a grandeza e a riqueza, tanto biológica como cultural, existentes na Floresta Amazônica fazem com que a mesma seja considerada um patrimônio nacional e internacional, ainda que sua soberania pertença ao território das nações onde geograficamente o bioma está relacionado. A Constituição Brasileira (Cap.225) afirma que a Floresta Amazônia é um patrimônio do Brasil.
Padre Josafá Carlos de Siqueira, SJ – Reitor e professor da PUC-Rio
A Amazônia é um grande bioma que está presente geograficamente em vários países da América do Sul, principalmente no Brasil, onde representa 40% do território nacional. Este bioma é citado no capítulo primeiro da “Encíclica Laudato Si’“, do Papa Francisco, quando ele comenta o que está acontecendo com a nossa casa comum, em particular, sobre a perda da biodiversidade (L.S.38). Lendo a Encíclica com os olhos voltados para a Amazônia, entendemos a força de expressão na afirmação do Papa Francisco, quando explicita que esta região é considerada um pulmão do planeta, tanto por razões biológicas, como climáticas. A vasta extensão geográfica do bioma (que ocupa cerca de seis milhões de quilômetros quadrados, sendo 70% destes no território brasileiro), cuja riqueza de sua megabiodiversidade começou em tempos geológicos remotos, com o soerguimento dos Andes, a regressão do mar na Bacia Amazônica, as mudanças nos cursos dos rios e a migração da flora e da fauna da América Central e da Floresta Atlântica. A chamada Hileia Amazônica, que compreende vários ecossistemas florestais e campestres, é responsável pela maior acumulação de carbono do planeta, como também pela liberação do oxigênio resultante da fotossíntese. Embora a floresta libere também CO2, sobretudo quando ela é queimada, a produção de oxigênio da floresta viva ainda é bem maior. O pulmão climático controla os ventos e os regimes da chuva, garantindo a distribuição pluviométrica em regiões próximas e distantes. Alterações e mudanças deste pulmão climático poderão acarretar grandes problemas socioambientais. Na perspectiva antropológica, sociológica e teológica, podemos entender porque a “Laudato Si” considera a Amazônia como um lugar especial para o planeta e o futuro da Humanidade. Primeiro, por ser uma região de grandeza continental, possuindo a maior bacia hidrográfica do mundo (sete milhões de quilômetros quadrados), a maior floresta tropical do planeta, a maior biodiversidade da Terra e a maior concentração de povos indígenas do mundo. Ali, podemos vislumbrar o ideal de uma ecologia integral, pois os aspectos ambientais, econômicos, sociais e culturais estão imbricados na relação entre o ecológico, o teológico e o antropológico.
Se existem na Amazônia escalas de grandezas consideráveis, também vamos encontrar diferentes olhares humanos sobre esta região, muitos dos quais incompatíveis com as perspectivas ética e teológica. Um olhar mitológico de território vazio e potencialmente inesgotável, não corresponde a um espaço que sempre foi ocupado pelos povos tradicionais e por milhares de seres vivos que ali vivem, cujo potencial das riquezas existentes são esgotáveis, sobretudo se continuarmos explorando de maneira insustentável as suas reservas minerais e biológicas. Também não cabe para a região um olhar mecanicista e utilitarista, que vê a Amazônia como patrimônio promissor para as geopolíticas e para os modelos de ocupação desordenados, motivando as migrações ilegais, a biopirataria, a grilagem de terras, a derrubada das matas, as contínuas queimadas e a aplicação de modelos agrícolas e econômicos não adequados à realidade ambiental, climática e social da região. Por trás destes olhares distorcidos também encontramos perspectivas preocupantes, como a visão da natureza como objeto de exploração, a quebra das relações entre povos nativos e as florestas, o enriquecimento de grupos que não têm compromisso com a sustentabilidade socioambiental, o desrespeito pela obra do Criador e os direitos das criaturas, o tráfico de plantas e animais nativos, o descompromisso com os bens comuns de toda a Humanidade e, finalmente, a falta de uma visão mais sistêmica de uma ecologia integral, conforme nos exorta a “Laudato Si´”.
Não podemos esquecer que a grandeza e a riqueza, tanto biológica como cultural, existentes na Floresta Amazônica fazem com que a mesma seja considerada um patrimônio nacional e internacional, ainda que sua soberania pertença ao território das nações onde geograficamente o bioma está relacionado. A Constituição Brasileira (Cap.225) afirma que a Floresta Amazônia é um patrimônio do Brasil.
No entanto, dada a sua importância para todo o planeta Terra, nos últimos anos, pelas crises dos recursos hídricos, a diminuição da biodiversidade, o crescimento da extinção de espécies e as mudanças climáticas, tem se levantado a discussão de que a Floresta Amazônia é um bem de caráter universal que presta um serviço à toda Humanidade, sendo, portanto, um patrimônio da casa comum planetária. Não podemos negar que o grande território Panamazônico, que envolve sete países, é o único lugar do planeta onde se concentram as duas grandes riquezas: a cultural e a ambiental. Isto não se vê mais em nenhuma parte do planeta Terra. Quanto à riqueza de recursos hídricos, a região Panamazônica detém 15-20% de toda a água doce do planeta, manancial fundamental para a sobrevivência dos ecossistemas, das espécies da fauna e da flora, e da saúde e subsistência da espécie humana. Como eticamente a água é considerada um bem de caráter universal que não pode ser privatizado e apropriado unicamente por um país, a riqueza hídrica Panamazônica passa a ter uma relevância para o futuro da Humanidade, sobretudo com o aumento da escassez da água em escala mundial, intensificando os conflitos e guerras pela disputa deste bem da natureza. Tratando-se da megabiodiversidade da região Panamazônica, que abriga 15% das espécies existentes no planeta, a relação entre o caráter nacional e internacional da Floresta Amazônica é um pouco mais complexo. Primeiro porque o conceito de soberania geopolítica não se aplica integralmente às espécies da fauna e da flora, pois tanto no passado geológico, como na história atual, os gêneros e as espécies têm ligações biogeográficas com outros continentes e ecossistemas extraterritoriais. As rotas migratórias e os processos de especiação e dispersão vão além das fronteiras das nações, pois muitos animais migraram ou chegaram à floresta pelas ligações intercontinentais. O mesmo ocorre com algumas espécies de plantas, ora intercambiando com as florestas tropicais da América Central, ora com a floresta atlântica e as demais formações florestais.
Quando falamos do clima, que também é considerado comum bem comum de caráter universal, e um patrimônio de toda a Humanidade, vamos perceber que o mesmo está ligado a fatores e processos que vão além das fronteiras nacionais. Os ventos alísios que sopram trazendo umidade para a Floresta Amazônica são oriundos de outros lugares, muito além das fronteiras geopolíticas. As poeiras que trazem partículas suspensas de fosfato que nutrem o solo da floresta advêm dos desertos da África. Assim, as mudanças climáticas que afetam e alteram os ciclos e a dinâmica da floresta passam a ser também um desafio para toda a Humanidade, pois a sua grande escala rompe as fronteiras e as soberanias, modificando e trazendo consequências nefastas nas escalas local e global.
Finalmente, a Floresta Panamazônica pode ser teologicamente considerada um patrimônio local e global de toda a Humanidade na perspectiva criacional, pois foi o Criador que permitiu a evolução de todo o bioma, dotando as espécies da fauna e da flora de amor, beleza e inteligência, além de estabelecer uma aliança com todos os seres viventes, conforme os relatos do Livro do Gênesis (Cap. 9). Sendo um patrimônio também de caráter teológico, automaticamente é um patrimônio de toda a Humanidade, pois Deus, na perspectiva da fé, é o sentido absoluto de tudo o que existe. Daí nasce o compromisso do ser humano em administrar, nacional e internacionalmente, a obra do Criador, não como donos e proprietários, mas como guardiões responsáveis pelo direito da vida de todos os seres viventes que habitam a casa comum planetária, seja os que compõem a territorialidade amazônica, como também todas as demais territorialidades que integram os diversos biomas e ecossistemas do planeta Terra. Neste sentido, antropologicamente, a Floresta Amazônica é uma responsabilidade patrimonial dos brasileiros, dos países circunvizinhos e de toda a Humanidade. Usar os recursos hídricos, minerais e biológicos de maneira racional e sustentável é dever de todos, principalmente dos brasileiros que detêm a maior parte da região Panamazônica.
Assim podemos entender a relevância de um Sínodo da Igreja Católica sobre a Amazônia, realizado em Roma em outubro de 2019, convocado e acompanhado pelo Papa Francisco. Apesar de se tratar de um evento pastoral voltado para a evangelização, neste lugar nacional e internacionalmente tão particular para o planeta, o Sínodo nos deixou um legado de olhares, soluções e propostas da Igreja Católica, que há muitas décadas está presente em vários espaços da grandiosa e complexa Amazônia.
Pela presença de muitas universidades católicas no Brasil e em alguns países da América Latina, as nossas Instituições são convidadas a darem uma contribuição sobre a Amazônia, abordando diversas áreas do conhecimento científico. O olhar do mundo universitário, seja ele liberal ou conservador, certamente enriquece as leituras, os conceitos, e as soluções técnicas, contribuindo no diálogo entre ciência e fé.
Celebrar o Dia da Amazônia é abrir-se aos desafios presentes e futuros, missão de todos nós que somos guardiões da Criação, unindo esforços para proteger a casa comum planetária, na busca de um desenvolvimento socioambiental verdadeiramente sustentável para aquela região. Celebrar o Dia da Amazônia é assumir desafios e os seguintes compromissos: 1) Pensar a Amazônia numa escala global, pois ela é um território do planeta onde ainda se conservam as duas grandes diversidades da Humanidade, a saber, a diversidade ecológica e ambiental, e a diversidade antropológica e cultural; 2) Buscar mecanismos de desenvolvimento regional que levem em conta as especificidades ambientais, sociais e climáticas da região, sem perder a riqueza existente do patrimônio cultural e ambiental; 3) Valorizar as bases produtivas locais, potencializando e abrindo-as para as demandas do mercado nacional e internacional, dentro de modelos autossustentáveis; 4) Diante dos desafios das mudanças climáticas, discutir e estabelecer políticas que respeitem as soberanias dos territórios, o cumprimento das legislações ambientais e o consenso entre o uso sustentável dos recursos da natureza e a preservação da biodiversidade, pois a riqueza desse patrimônio é um legado que Deus colocou em nossas mãos para ser administrado com cuidado, respeito e responsabilidade; 5) Pensar a Amazônia na perspectiva ética, conservando os bons hábitos e costumes dos povos da floresta, não corrompendo-os com os paradigmas ideológicos da globalização que destrói as culturas locais com os processos perversos de homogeneização cultural e perdas de valores humanísticos, ambientais e religiosos; 6) Defender a Amazônia a partir do paradigma da ecologia integral, pois ali se vislumbra um laboratório vivo para os estudos da diversidade cultural e ambiental, dos processos de educação ambiental, de modelos de sustentabilidade socioambiental e de uma ecoteologia da Criação.
Fonte: Vatican News