Entrevista com a premiada teóloga Doris Reisinger, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos
Doris Reisinger é uma das quatro palestrantes em uma série de lives sobre abusos que ocorre entre 28 de abril e 18 de maio pela União das Conferências Europeias de Superiores Maiores. Reisinger recebeu o prêmio Christine Schenk para Excelentes Jovens Lideranças Católicas de 2020, dado pela FutureChurch, devido ao seu testemunho e artigos sobre abusos espirituais e sexuais de mulheres, particularmente de mulheres religiosas pelo clero.
Ela também tem sido crítica das “estruturas e cultura que mantém a maioria das mulheres em uma posição inquestionável de obediência ao superior”, como aponta FutureChurch. Essa cultura, dizia ela em sua mensagem (sob o antigo nome de Doris Wagner) ao evento do Voices of Faith, “Superando o silêncio – Vozes de mulheres na crise de abusos”, realizado em novembro de 2018, foi o que a impediu de falar por dois anos sobre seu próprio caso de ser estuprada por um padre. Ela entrou na vida religiosa aos 19 anos e foi estuprada cinco anos depois, poucos meses depois de professar seus votos, disse ela. Ela deixou a vida religiosa em 2011.
No evento, ela contou que durante sua vida como religiosa consagrada, também foi solicitada para sexo em um confessionário por outro padre, que ocupava um cargo na Congregação para a Doutrina da Fé. O teólogo austríaco padre Hermann Geissler negou o incidente, mas deixou a CDF em janeiro de 2019 depois que as acusações se tornaram públicas. Um tribunal do Vaticano o absolveu em maio de 2019 sem ouvir o depoimento oral de Reisinger, embora ela pudesse apresentar um depoimento por escrito.
Reisinger, que tem doutorado em filosofia, leciona na Goethe University em Frankfurt, Alemanha, e também é uma das 12 pesquisadoras do projeto Cushwa Center da Universidade de Notre Dame sobre “Gênero, Sexo e Poder: Rumo a uma História do Abuso Sexual do Clero na Igreja Católica dos EUA”. Ela escreveu dois livros sobre abuso espiritual e sexual na Igreja Católica, ambos publicados em alemão. “Ela tem estado na vanguarda do movimento #NunsToo escrevendo e falando sobre o abuso de freiras”, disse o artigo FutureChurch sobre o prêmio, “porque ‘Não quero que nenhuma irmã mais nova passe pelo que eu passei’”.
A entrevista é de Joyce Meyer, publicada por Global Sisters Report, 28-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis a entrevista.
Como você define o abuso espiritual?
Eu defino abuso espiritual como uma violação da liberdade espiritual da pessoa, nos termos da Gaudium et Spes: uma violação do “mais secreto núcleo e santuário” onde uma pessoa “está sozinha com Deus, cuja voz ecoa em sua profundidade”. Por essa definição, qualquer ato de fé precisa ser livre. Se um ato não se origina do livre-arbítrio de uma pessoa, mas simplesmente de sua falta de alternativas, ou pior, da manipulação, coerção ou violência, claramente não é um ato de fé. Para ser um ato de fé, ele precisa ser realizado livremente, em primeiro lugar.
Por “livre” quero dizer: a pessoa que o realiza realmente deseja, sabe o que está fazendo e poderia igualmente abster-se de fazê-lo, sem ter que temer qualquer forma de pressão ou vergonha. Infelizmente, este princípio teológico fundamental nem sempre é respeitado, nem mesmo nas ordens religiosas. Em vez disso, as pessoas, incluindo religiosos e religiosas, são mais ou menos sutilmente pressionadas ou trabalhadas para realizar certos atos de fé. Isso não é apenas absurdo, é abuso espiritual. E pode ter consequências graves, não apenas para os indivíduos que sofrem esse tipo de abuso, mas também para as comunidades nas quais o abuso espiritual é desenfreado – e para a igreja, se ela assim tolerar.
Quais são os sinais clássicos de abuso espiritual? Como uma pessoa saberia?
Um sinal clássico é a confusão da área externa (forum externum) e interna (forum internum). Se a mesma pessoa ocupa uma posição de liderança na área externa e tem autoridade espiritual sobre os membros de sua comunidade, isso é uma bandeira muito vermelha: diante de um orientador espiritual que é ao mesmo tempo seu superior, a liberdade interior de uma irmã é seriamente limitada. Normalmente, isso anda de mãos dadas com a prescrição de orientadores espirituais ou confessores e a compulsão de revelar regularmente sua consciência a seus superiores.
Outros sinais de abuso espiritual incluem uma atmosfera espiritual extremamente emocional ou um tipo de uniformidade espiritual, em que muitas pessoas parecem ter exatamente as mesmas experiências espirituais e usam literalmente as mesmas frases para descrevê-las, enquanto pessoas que não têm essas mesmas experiências parecem ser deficientes e envergonhadas. Outro sinal alarmante é a dependência que as pessoas desenvolvem quando sofrem abuso espiritual: sob a influência de seu agressor, elas mudam radical e rapidamente e se tornam completamente dependentes dele ou dela e do “material espiritual” que recebem dessa pessoa. Enquanto qualquer espiritualidade sólida e saudável leva as pessoas a uma maior liberdade e estabilidade interior, as pessoas que sofrem abuso espiritual tornam-se dependentes, às vezes ansiosas e escrupulosas, e às vezes isso assume formas até patológicas.
É uma questão de gênero? Relacionado a idade? Descreva por favor.
Todos os tipos de pessoas e comunidades religiosas são afetados. No entanto, minha impressão é que as mulheres jovens são especialmente vulneráveis ao abuso espiritual e muitas vezes têm experiências particularmente ruins, incluindo formas de violência sexual que estão ligadas ao abuso espiritual. Pense em perpetradores como o irmão Ephraim ou Marie-Dominique Philippe, que usaram manipulação espiritual para coagir uma jovem irmã a fazer sexo com eles. Essas são experiências particularmente devastadoras.
Que ação é necessária para resolver este problema e por quem?
Na minha opinião, existem pelo menos duas dimensões que precisam ser abordadas. Uma é um conceito de vida religiosa profundamente enraizado, mas prejudicial, que tende a apagar a pessoa individual e seus direitos e enfatizar quase exclusivamente no auto-sacrifício e a mortificação, muitas vezes em uma atitude altamente romantizada. Isso é extremamente perigoso e precisa parar, não apenas na maioria das ordens religiosas, mas também nos documentos oficiais e em todos os lugares da igreja. O outro nível, muito mais importante, é o nível do direito canônico e das normas vinculativas. Em teoria, a separação de forum externum e forum internum já existe. Mas, na prática, muitas comunidades não respeitam essa separação e, em muitos casos, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica não intervém. O mesmo é verdade para muitos casos de abuso espiritual, incluindo casos graves que traumatizam as pessoas e as deixam com cicatrizes para o resto da vida. Esses casos dificilmente constituem infrações nos termos do direito canônico ou do direito civil e, portanto, dificilmente implicam em sanções. Eu acho que isso precisa mudar.
Que recurso uma irmã teria se fosse abusada um membro da comunidade ou uma irmã com autoridade? Quem pode reconhecer isso como abuso?
Esses casos de abuso geralmente não constituem crimes e, portanto, são muito difíceis de denunciar com eficácia. Em muitos casos, a melhor coisa e a única coisa a fazer é deixar a comunidade. Em casos menos sérios e isolados, uma irmã pode apontar com sucesso à sua superiora, que, por exemplo, “estão os Superiores proibidos de induzi-los por qualquer modo a manifestar-lhes a consciência” (Cân. 630). No entanto, em ordens em que esses tipos de intrusões são normalizados, ela provavelmente não terá sucesso.
O que você deseja que as pessoas saibam sobre esse problema?
É crucial entender a seriedade do abuso espiritual. Os abusadores espirituais parecem ser líderes espirituais bem-sucedidos porque conseguem atrair um grande número de jovens em um curto período de tempo e os fazem suportar todos os tipos de coisas, aparentemente de forma voluntária. Portanto, os abusadores espirituais têm sido celebrados e promovidos na Igreja Católica há décadas. Apenas pense em pessoas como Marcial Maciel. Eles se tornaram o modelo que outros agora imitam. Isso prejudica Igreja profundamente, não apenas porque atinge muitos indivíduos, mas porque é perigoso para muitas bases da nossa fé. Quando pessoas perdem suas liberdades interiores para se autodeclararem “líderes” espirituais que os manipulam, a voz de Deus é silenciada em seus corações.