Completou-se o tempo… A caminhada quaresmal

Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Por Frei Almir Guimarães

 

O deserto é o lugar onde ficamos completamente desprotegidos. Lá estamos sozinhos, frente à frente com nós mesmos, com nosso vazio interior, nosso desamparo, nossa solidão, com o imenso nada ao redor e dentro de nós (Grün-Reepen)

♦ Somos colocados diante de um relato evangélico breve como somente Marcos consegue fazer. O Espírito leva Jesus para o deserto, permanecendo ali quarenta dias onde foi tentado por Satanás. Vivia entre animais selvagens e os anjos o serviam. Desafio da tentação e o paraíso reencontrado. Nada de descrição das tentações que aparecem nos outros evangelistas: pão, poder e presunção. Eis aí, pois, o domingo da tentação no deserto. Tempo de escolhas para Jesus. Tempo para rever nossas escolhas. Para Jesus completara-se o tempo para começar seu ministério. “O tempo já se completou”. Agora era para valer…

♦ Quaresma, quarenta dias, tempo de recolhimento, de revisão de vida, tempo que começou quando colocaram cinza em nossa cabeça, somos pó, poeira que o vento leva. Período em que temos diante dos olhos a anual celebração da Páscoa, tempo de reflexão, de acelerar nosso processo conversão para ganhar tempo, tempo para compreender o que vem a ser o homem novo, época em que nos reportamos ao período do catecumenato do século V, das longas maturações interiores em que adultos, pessoas tocadas pelos cristãos, pediam para mergulhar nas águas do batismo na Vigília Pascal. “Oxalá ouvísseis hoje a voz do Senhor e não endureçais os vossos corações”. Um retiro espiritual. O que somos? O que realizamos? O que nos faz viver? Onde está nosso tesouro?

♦ Na história da Igreja, monges retiravam-se para o silêncio do deserto. Há um deserto íntimo, um deserto social e esse deserto do silêncio que nos permite recuperar nossa intimidade e nossa verdade. “As grandes obras são obras do silêncio… Se cada dia não reservarmos para nós um momento de silêncio, total, absoluto, senão fizermos este lugar para Deus, silêncio que é como um novo nascimento se não atingirmos esse nível central em que a alma se apresenta unida e não fugirmos de todas as correntes de superficialidade, nunca seremos homens nem cristãos. É no silêncio que podemos respirar a presença de Deus” (Maurice Zundel). Deserto lugar de solidão, de abandono e de tentação.

♦ Ele, Jesus filho do Pai, tendo assumido a condição humana e associando-se a todos os buscadores de conversão no batismo do Jordão, inaugurava sua missão determinada pelo Pai. Revirar as coisas de perna para o ar. Poderosos são os pequenos e não os que se “vestem com penas de pavão”. Grandes são os que os lavam os pés dos irmãos, gente que leva em sua bagagem uma bacia e uma toalha. Pessoas que criam paz e, dissolvem os laços da violência. Os últimos são os primeiros. Um tempo novo de pessoas que juntam trapos humanos e os levam para a hospedaria. Mundo em que os misericordiosos alcançam misericórdia e em que os construtores da casa da vida buscam fazê-la sobre a rocha da fé. “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”.

♦ O tempo da quaresma sempre foi tido como bem propícia ocasião para ver como reagimos no combate contra as forças do mal. Tentações, sugestões que são feitas para apequenar nossa vida, convites atraentes para que aproveitemos a vida ao nosso jeito, segundo nossos interesses, nem sempre os mais generosos, nem sempre os mais humanos e mais transparentes. As tentações sugerem que acolhamos candidamente o que nos é proposto tentando abafar o grito de plenitude que ressoa dentro de nós, sem prestar atenção ao Mistério que fala em nosso interior, nem o murmúrio daqueles que perderam a força de viver e clamam por nós, à beira do caminho, por um pedaço de pão e um afago da mão. Estamos ocupados demais com nosso ego. Cedendo às tentações as coisas parecem agradáveis. Os que acolhem estas solicitações vão se deteriorando humana e esquecem as ternuras de Deus a seu respeito.

♦ Vencer as tentações significa dizer sim ao que posso fazer em conformidade com Cristo, dizer não às pulsões idolátricas e egocêntricas que nos alienam e contradizem nossas relações com Deus, com os outros, com as coisas, conosco mesmos, relações chamadas a se caracterizarem pela liberdade e pelo amor. (cf. Enzo Bianchi).

♦ Não somos completamente autônomos. Não nos inventamos a nós mesmos. Somos partes do sonho de Deus e nossa felicidade não consiste em cumprir uma mera folha da tarefas, mas em voltar o nosso interior para o bem querer, o amor de verdade, buscar o regaço de Deus, procurar encontrar a mão de um companheiro de viagem. Dependemos. Existimos para… Esses outros foram inventados pelo mesmo Amor que nos inventou. Vivemos em definitiva dependência.

♦ Terrível a tentação do poder, da vontade de dominar, de não possibilitar a participação dos outros em nossos projetos, de deixar de ouvir as palavras suaves que nos chegam do mistério do outro. Tal acontece em nossa vida pessoal, na sociedade e mesmo na Igreja. Poder e vaidade não podiam encher a vida de Jesus de brilho. Segundo os outros evangelistas, o diabo sugeriu que Jesus transformasse as pedras em pães não se importando com nada. “Nossas necessidades não ficam satisfeitas apenas com o fato de termos assegurado nosso pão material. O ser humano necessita de muito mais. Inclusive para resgatar da fome e da miséria os que não têm pão, precisamos escutar a Deus, nosso Pai, e despertar em nossa consciência a fome de justiça, a compaixão e a solidariedade” (Pagola, A Boa Nova de Jesus, Vozes, p. 31).

♦ Arriscar-se na vida é o que o Senhor pede e ele mesmo vai fazer assim deixando as areias mornas do deserto. Não ceder à tentação de retirar-se da luta, da ideia de que as pessoas “se virem” sozinhas, do indiferentismo e do salve-se-quem puder. Tentação de enfiar a cabeça na areia e não tomar consciência dos problemas que afetam nossa vida pessoal, a vida do mundo e a vida da Igreja no presente e no futuro. Tentação da intolerância e da intransigência.

♦ Éxupéry: “O deserto sempre me encantou. A gente se senta sobre uma duna de areia. Não se vê nada. Nada se escuta. E, no entanto, há qualquer coisa que se irradia do silêncio – O que torna belo o deserto, diz o pequeno príncipe é que em algum lugar ele esconde um poço”.

♦ No deserto aprendemos que não podemos nos ajudar a nós mesmos… somos pressionados a sair de uma letargia humana e espiritual. O tempo já se completou.

Oração

“E não nos deixeis cair em tentação”

Rezo devagar estas palavras, fazendo-as minhas.
Não me deixes quando as paredes do tempo se tornam instáveis e as palavras de hoje tem a dureza do pão amassado ontem.
Não me deixes quando recuo porque é difícil, quando quase me inclino perante a idolatria do que e cômodo e vulgar.
Não me deixes atravessar sozinho os embaciados corredores da incerteza ou perder-me no sentimento do cansaço e da desilusão.
Não me deixes tombar na maledicência e no descrédito quanto à vida.
Que a tua mão levante à altura da luz a minha esperança.

José Tolentino Mendonça
Um Deus que dança, Paulinas, p. 97

Fonte: Franciscanos

 


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

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