Dom Roque: “o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, desde o ano 1996, é um importante instrumento de denúncia da violência e das violações que acometem os povos originários até hoje no país”.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou nesta quinta-feira (28) o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2020.
O Relatório está dividido em três capítulos principais. A publicação retrata a realidade dos povos indígenas durante o segundo ano do governo de Jair Bolsonaro e apresenta também análises sobre as violações contra seus direitos em meio à pandemia de Covid-19.
Na apresentação do Relatório o presidente do CIMI dom Roque Paloschi afirmou que nos fala o Papa Francisco “nunca os povos originários, estiveram tão ameaçados, como o estão agora”. É com essa voz de denúncia e de indignação, que trazemos mais uma vez os dados de violência e violação de direito contra os povos indígenas.
O relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, desde o ano 1996, – continuou – é um importante instrumento de denúncia da violência e das violações que acometem os povos originários até hoje no país.
Dom Roque disse que “os dados do ano 2020, que apresentamos hoje, refletem a realidade dos povos indígenas no segundo ano do governo Bolsonaro, em meio à pandemia. Enquanto no mundo, havia um momento de atenção e cuidado, no Brasil o inverso disso, lideranças do executivo propagava discurso de ódio, negacionismo e um momento ideal “para passar a boiada”, violando a Constituição Federal e abrindo os territórios indígenas, para o avanço da grilagem, da soja, do garimpo, do desmatamento e inúmeras outras violências contra lideres indígenas, que se opõe a mercantilização da vida e da terra”.
O arcebispo continua dizendo que “comunidades foram expulsos de suas terras, lideranças foram assassinadas e com essa política anti-indígenas, incentivou-se o divisionismo no interior dos povos indígenas. É com pesar que mais uma vez nos reunimos, para o lançamento de mais um relatório de violência contra os povos indígenas, isso é uma vergonha para o país, que trata os povos originários com tanta violência, descaso e preconceito”.
É movido pela esperança, que anunciamos – disse ainda dom Roque -, apesar das muitas situações de morte, que os povos originários continuam sendo “povos de antigos perfumes, que continuar a perfumar o continente contra todo o desespero”, conforme nos diz o documento final do Sínodo da Amazônia. E todos somos testemunhas, que os povos originários são semente teimosa, contra toda as ameaças em sua integridade física, cultural e territorial. A mobilização ‘levante pela vida’ e a mobilização das mulheres indígenas, como guardiãs e cuidadoras da vida e da terra, nos enche de coragem, para continuar a missão de denunciar mais uma vez as violências e violações contra os povos originários.
Dom Roque convidou a todos e a todas as pessoas, para entrar na ciranda da solidariedade, no cuidado da vida, a escutar o grito dos pobres e o grito da terra, que já não aguentam mais tanta exploração e tantas mortes. A pergunta que fazemos a nós todos, “O que ficará para as gerações futuras se continuarmos com tanta exploração e morte?”
A igreja – finalizou Dom Roque – continua sendo aliada dos povos originários, “nas suas lutas por mais vida, terra e direito e reafirma seu compromisso na denuncia de todas as situações de morte, que atentam contra os povos originários. a causa indígena é de todos nós”.
SUMÁRIO
O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apresenta o retrato de um ano trágico para os povos originários no país. A grave crise sanitária provocada pela pandemia do coronavírus, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores intensificassem ainda mais suas investidas sobre as terras indígenas.
O segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19 – e pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas.
O ano de 2020 ficou marcado pelo alto número de mortes ocorridas em decorrência da má gestão do enfrentamento à pandemia no Brasil, pautada pela desinformação e pela negligência do governo federal. Esta realidade, lamentável para a população brasileira em geral, representou uma verdadeira tragédia para os povos indígenas.
Em muitos casos, o vírus que chegou às aldeias e provocou mortes foi levado para dentro dos territórios indígenas por invasores que seguiram atuando ilegalmente nestas áreas em plena pandemia, livres das ações de fiscalização e proteção que são atribuição constitucional e deveriam ter sido efetivadas pelo poder Executivo.
O Relatório identificou que, em 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 141% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 109 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.
As invasões e os casos de exploração de recursos naturais e de danos ao patrimônio registrados em 2020 repetem o padrão identificado no ano anterior. Os invasores, em geral, são madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e grileiros, que invadem as terras indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios inteiros em busca de ouro e outros minérios, além de desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens. Em muitos casos, os invasores dividem a terra em “lotes” que são comercializados ilegalmente, inclusive em terras indígenas habitadas por povos isolados.
Esses grupos e indivíduos atuam com a certeza da conivência – muitas vezes explícita – do governo, cuja atuação na área ambiental foi sintetizada pela célebre frase do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles: era preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada” da desregulamentação.
O caso dos povos Yanomami, Ye’kwana e Munduruku exemplifica a estreita relação entre a ação dos invasores, a omissão do Estado e o agravamento da crise sanitária. Na TI Yanomami, onde é estimada a presença ilegal de cerca de 20 mil garimpeiros, os invasores devastam o território, provocam conflitos, praticam atos de violência contra os indígenas e, ainda, atuam como vetores do coronavírus – num território onde há também a presença de indígenas em isolamento voluntário.
Em muitas aldeias, a pandemia levou as vidas de anciões e anciãs que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos, representando uma perda cultural inestimável – não só para os povos indígenas diretamente afetados, mas para toda a humanidade. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 43 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19 e pelo menos 900 morreram por complicações da doença no ano de 2020.
As violências praticadas contra os povos indígenas e seus territórios são condizentes com o discurso e as práticas de um governo que tem como projeto a abertura das terras indígenas à exploração predatória, atuando no sentido de disponibilizar essas áreas para a apropriação privada e favorecendo os interesses de grandes empresas do agronegócio, da mineração e de outros grandes grupos econômicos.
Essa opção política do governo federal é evidenciada pelos inúmeros discursos proferidos pelo próprio presidente da República e por medidas práticas como o Projeto de Lei (PL) 191, apresentado pelo governo ao Congresso Nacional em fevereiro de 2020, e a Instrução Normativa (IN) 09, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em abril.
Enquanto o PL 191/2020 prevê a abertura das terras indígenas para a mineração, a exploração de gás e petróleo e a construção de hidrelétricas, entre outras atividades, a IN 09/2020 passou a permitir a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas – o que inclui terras em estágio avançado de demarcação e áreas com restrição de uso devido à presença de povos isolados.
Estas medidas também tiveram influência no aumento dos casos de “conflitos relativos a direitos territoriais”, que mais do que dobraram em relação ao ano anterior. Foram 96 casos do tipo em 2020, 174% a mais do que os 35 identificados em 2019.
Também chama atenção o considerável aumento dos assassinatos de indígenas no Brasil. Em 2020, 182 indígenas foram assassinados – um número 37% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 133 assassinatos.
Uma síntese deste cenário desolador pode ser indicada pelo fato de que, embora nem todos os tipos de violência tenham apresentado aumento em relação a 2019, o cômputo geral das categorias “violência contra a pessoa” e “violência contra o patrimônio indígena”, em 2020, foi o maior dos últimos cinco anos. No mesmo período, os casos de “violência por omissão do poder público” registrados em 2020 só foram menores que os de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.
Violência contra o Patrimônio
Em relação aos três tipos de “Violência contra o Patrimônio”, que formam o primeiro capítulo do Relatório, foram registrados os seguintes dados: omissão e morosidade na regularização de terras (832 casos); conflitos relativos a direitos territoriais (96 casos); e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos Em meio à pandemia, invasões de terras e assassinatos de indígenas aumentaram em 2020.
A paralisação das demarcações de terras indígenas, anunciada pelo presidente da República ainda durante a sua campanha eleitoral, continua sendo uma diretriz de seu governo. Das 1.299 terras indígenas no Brasil, 832 (64%) seguem com pendências para sua regularização. Destas, 536 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas, mas sem nenhuma providência do Estado para dar início ao processo administrativo de identificação e delimitação.
Violência contra a pessoa
Em 2020, os dados de “Violência contra a Pessoa”, sistematizados no segundo capítulo do Relatório, foram os seguintes: abuso de poder (14); ameaça de morte (17); ameaças várias (34); assassinatos (182); homicídio culposo (16); lesões corporais dolosas (8); racismo e discriminação étnico cultural (15); tentativa de assassinato (13); e violência sexual (5). Os registros totalizam 304 casos de violência praticadas contra a pessoa indígena em 2020. Este total é maior do que o registrado em 2019, quando foram identificados 277 casos.
Os estados com o maior número de assassinatos de indígenas em 2020, segundo os dados obtidos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e a secretarias estaduais de saúde, foram Roraima (66), Amazonas (41) e Mato Grosso do Sul (34). Infelizmente, os dados fornecidos pela Sesai e pelos estados não apresentam informações detalhadas sobre as vítimas e nem as circunstâncias destes assassinatos, o que inviabiliza análises mais aprofundadas.
Destacam-se, neste contexto, dois casos ocorridos em meio a desastrosas ações da polícia militar. No Amazonas, o caso que ficou conhecido como “massacre do rio Abacaxis” teve origem no conflito causado por turistas que ingressaram ilegalmente no território de indígenas e ribeirinhos, na região dos rios Abacaxis e Marimari, para praticar pesca esportiva. Uma operação da polícia militar no local resultou na morte de dois indígenas do povo Munduruku e de pelo menos quatro ribeirinhos, além de outros dois desaparecidos e diversos relatos de violações de direitos humanos praticados pelos policiais. Em Mato Grosso, quatro indígenas do povo Chiquitano que estavam caçando numa área próxima à sua aldeia foram mortos por policiais do Grupo Especial de Fronteira (Gefron).
Cabe ressaltar que muitos dos casos de abuso de poder, ameaças várias e racismo e discriminação étnico cultural ocorreram quando os indígenas buscavam atendimento ou assistência em meio à pandemia. Além das mortes e da fome, que atingiu muitas comunidades em situação de vulnerabilidade extrema, o preconceito e o racismo foram agravantes do sofrimento vivenciado pelos povos indígenas durante a crise sanitária.
Violência por Omissão do Poder Público
Embora não tenham registrado aumento em relação a 2019, os casos de “violência por omissão do poder público” em 2020 mantiveram-se, junto com o ano anterior, em um patamar elevado em relação ao registrado nos anos imediatamente anteriores ao início do governo Bolsonaro.
Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi também obteve da Sesai dados parciais de suicídio e mortalidade na infância indígena. Em 2020, foram registrados 110 suicídios de indígenas em todo o país. Os estados do Amazonas (42) e Mato Grosso do Sul (28) mantiveram-se como os que registraram as maiores quantidades de ocorrências. Não houve aumento dos casos em relação a 2019, quando os dados da Sesai indicaram a ocorrência de 133 suicídios.
Ainda segundo os dados da Sesai, foram registrados 776 óbitos de crianças de 0 a 5 anos em 2020. Também neste caso os estados com maior número de registros foram os mesmos que no ano anterior: Amazonas (250 casos), Roraima (162) e Mato Grosso (87). Apesar de, como no caso dos suicídios, não ter sido verificado um aumento do número de casos em relação a 2019, a Secretaria ressalta que os dados são preliminares e estão sujeitos a alteração.
Ainda nesta categoria foram registrados os seguintes dados: desassistência geral (51); desassistência na área de educação escolar indígena (23); desassistência na área de saúde (82); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (11); e morte por desassistência à saúde (11), totalizando 178 casos.
Também neste capítulo, grande parte dos casos relatados possui relação direta com o contexto da pandemia e a falta de assistência do poder público, especialmente na área de saúde. A falta de apoio para a instalação de barreiras sanitárias nas terras indígenas, a interrupção ou omissão no fornecimento de cestas básicas e de materiais de higiene, necessários para garantir condições básicas de proteção e prevenção contra a Covid-19, foram alguns dos casos recorrentes registrados neste capítulo.
Artigos e dados sobre a pandemia
Além dos dados referentes ao ano de 2020, o Relatório apresenta também artigos com a proposta de aprofundar a reflexão sobre a realidade dos povos indígenas no país. Neste ano, três artigos abordam os impactos da pandemia sobre os povos indígenas, acompanhados de uma síntese dos dados de óbitos e contaminações entre indígenas sistematizados pela Apib e pela Sesai a respeito do ano de 2020. Os textos abordam como a pandemia afetou os povos indígenas no país; o descaso do governo federal na reação à crise sanitária; e a situação dos indígenas encarcerados em meio à pandemia. Além disso, outros dois artigos discutem o racismo e a discriminação contra os povos originários e o sequestro da água dos rios pelo agronegócio no Tocantins.
Caci: mapa dos ataques contra indígenas no Brasil
A plataforma Caci, mapa digital que reúne as informações sobre os assassinatos de indígenas no Brasil, foi atualizada com os dados do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil de 2020. Caci, sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas, também significa “dor” em Guarani. Com a inclusão dos dados de 2020, a plataforma passa a abranger informações georreferenciadas sobre 1.236 assassinatos de indígenas, reunindo dados compilados desde 1985.
Fonte: Vatican News