As lágrimas de São Pedro

Pedro se entristeceu

 

Uma das cenas mais tocantes do relato evangélico sobre as aparições de Jesus ressuscitado é a do diálogo que Cristo manteve com Pedro, enquanto caminhavam à beira do lago de Tiberíades (João, 21, 15 ss.).

Sete dos discípulos de Jesus – conta São João –, enquanto esperavam na Galiléia o encontro que Cristo marcara lá com eles (cf. Mc 16,7), foram pescar no lago, como tantas vezes o haviam feito em anos anteriores. Naquela noite, porém, nada apanharam. Começavam a voltar para a praia, quando avistaram, na vaga luz do amanhecer, uma figura imprecisa. Não é agora o momento de comentar com detalhe toda essa belíssima passagem do Evangelho, que ocupa todo o capítulo 21 de São João. Baste-nos lembrar que a “figura” avistada era Jesus, que Cristo se dirigiu logo a eles com afeto, orientou-lhes a pesca e realizou um milagre; depois, tomou com eles, sentados na praia, uma refeição de peixe assado e pão, e lhes inundou o coração de ternura e alegria.

Tendo eles comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes? Respondeu ele: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”… Três vezes repetiu essa pergunta amorosa. Podemos imaginar os sentimentos de Pedro, que por três vezes tinha negado Jesus durante a Paixão. O apóstolo, com certeza, não esperava essas palavras. Talvez aguardasse apenas uma manifestação explícita de que, apesar de seu grave pecado, nosso Senhor já o perdoara. Jesus, porém, lembrou-lhe indiretamente, delicadamente, suas três negações. Se mexeu, porém, de leve na sua ferida, foi apenas para ungi-la com o bálsamo do carinho e da esperança.

Não há dúvida de que a pergunta de Jesus – os três pedidos de amor e a confiança com que o confirmou em sua missão – trouxe à memória de Pedro aqueles momentos amargos da Paixão em que negara uma e outra vez conhecer Cristo e declarara enfaticamente nada querer saber dele. Como lhe doeu logo na alma ter sido tão covarde, tão egoísta, capaz de renegar Jesus e até de falar mal dele, para salvar a sua própria pele.

Naquela noite triste, Cristo estava no pátio da casa do sumo sacerdote, preso, manietado, com as faces roxas de pancadas e sujas de escarros e a alma dilacerada por insultos e calúnias, e muito precisado de carinho, de consolo, de amizade… E foi justamente nessa noite Pedro o rejeitou, negou conhecê-lo e disse não ter nada com ele. Mas, ao mesmo tempo, foi uma noite muito bonita. É comovente lembrar que, depois da terceira negação, quando o galo já havia cantado – como Jesus predissera –, diz são Lucas que, voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro lembrou-se da palavra do Senhor: ”Hoje, antes que o galo cante, me negarás três vezes”. E, saindo fora, chorou amargamente (Lc 22,62).

Pobre Pedro! Como deve ter sido aquele olhar de Jesus sofredor! Nele não houve nada de recriminação, nada de ressentimento. Apenas estava dizendo a Pedro com os olhos: “Eu te amei com predileção e, apesar de tudo o que acabas de fazer, continuo a amar-te, pobre amigo, pobre filho meu”. Era um olhar de misericórdia, que é a expressão mais bela e profunda do amor que Deus nos tem, “amor mais forte do que a morte –diz João Paulo II -, mais forte do que o pecado”. E ainda acrescenta: “São infinitas a prontidão e a força do perdão de Deus. Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força e nem sequer a limita” (Enc. Dives in misericordia, n. 83). Será que percebemos a enorme fonte de confiança, a inesgotável fonte de esperança que é, para o pecador – para todos nós, que somos pecadores -, a misericórdia de Deus? É tão imensa, tão incrível, que nos desarma.

Pois bem. Foi isso o que aconteceu com Pedro depois daquele olhar de Jesus. Lembrou-se então, com certeza, do momento em que Jesus o escolhera para ser seu Apóstolo, o chefe dos Apóstolos, a pedra fundamental da sua Igreja (cf. Jo 1,40-42). Lembrou-se do imenso oceano de cuidados, compreensão, afeto, paciência, ensinamentos e ajudas que Jesus lhe havia dispensado ao longo dos três anos em que tinham andado juntos; compreendeu que tinha sido objeto de um carinho imenso, que, mesmo que quisesse, não teria como pagar… E, naquela noite de dores, Jesus lhe pagava o pecado, não com um castigo, nem sequer com um olhar de censura ou de rejeição, mas com aquele olhar acolhedor e afetuoso. Por isso, Pedro, saindo fora, chorou, chorou transtornado de pena, chorou desfeito perante a misericórdia de Cristo… Dizem que, durante anos, ainda se lhe notava na face a vermelhidão causada por tantas lágrimas.

Eram lágrimas de amor ardente. Houve outro Apóstolo, que, nas horas da Paixão, também negou, traiu, e se arrependeu – Judas –, mas chorou só de remorso e de raiva, do horror insuportável que lhe causava perceber o pecado que tinha cometido. Pequei, entregando o sangue de um justo (Mt 27,4) – gritou; mas não lhe adiantou nada. Não soube confiar na misericórdia de Deus, não foi capaz de acreditar na misericórdia divina, “que – como diz o Papa João Paulo II – sabe tirar o bem de todas as formas do mal existente no homem e no mundo” (Enc. Dives in miseriordia, n.44). Judas Iscariotes desesperou-se, jogou então no templo as moedas de prata, saiu e foi enforcar-se (Mt 27,5). Poderia ter sido um grande santo, se tivesse compreendido o coração de Jesus, se tivesse sido humilde…!

Reflexos da misericórdia de Deus

Mas voltemos àquela conversa a sós de Jesus ressuscitado com Pedro, à beira do lago, pois ela nos sugere outras coisas belíssimas, além das que já meditamos.

Para isso, será bom recordar a cena completa: Tendo eles comido, perguntou Jesus a Simão Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” Respondeu ele: “Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta os meus cordeiros”. Perguntou-lhe outra vez: “Simão, filho de João, tu me amas?” Respondeu-lhe: “Sim, Senhor, tu sabes que te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta os meus cordeiros”. Perguntou-lhe pela terceira vez: “Tu me amas?” Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou pela terceira vez: “Tu me amas?”, e respondeu-lhe: “Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”.

Que vemos aí? Que verdades sobre Cristo nos mostra esse trecho do Evangelho? São coisas difíceis de expressar, ainda que sejam coisas muito simples. Todas elas são reflexos da misericórdia de Deus:

– Por um lado, Jesus ajuda Pedro a apagar os seus três pecados com três atos de amor.

– Em segundo lugar, Jesus faz ver a Pedro que, apesar do seu pecado, o considera capaz de ser muito santo, de amar mais do que todos estes, mais do que ninguém. Que confiança!

– Terceiro: em vez de depor Pedro do seu cargo de Pastor e chefe da Igreja, por ter caído tão baixo, Jesus faz questão de confirmá-lo na autoridade que lhe havia conferido, para que fosse o primeiro entre todos os Apóstolos (Cf. Mt 16,18-19). Como vemos, Jesus confirma-o na função de pastor dos cordeiros e pastor das ovelhas, ou seja, pastor dos pastores e pastor do povo fiel, de todo o seu rebanho, que é a Igreja.

Todos esses “reflexos da misericórdia” nos falam da esperança que deve animar a nossa vida de filhos de Deus. O primeiro e o segundo “reflexo” falam sobretudo da confiança que Jesus tem em nós, na nossa capacidade de nos recuperarmos, por mais que tenhamos sido e sejamos pecadores; e também da alegria que Deus “experimenta” quando um pecador – por mais “trapo sujo” que seja – se volta para Ele, arrependido e com amor.

Há um poeta católico francês, Charles Péguy, que captou muito bem a beleza deslumbrante da misericórdia e da esperança que ela suscita. Vale a pena lembrar o seguinte trecho de um de seus poemas?

“Deus pôs a sua esperança em nós. Foi Ele que começou. Ele esperou que o último dos pecadores,

que o mais ínfimo dos pecadores, fizesse pelo menos algum pequeno esforço pela sua salvação,

por pouco, por pobremente que se esforçasse,

que se ocupasse ao menos um pouco disso.

Ele esperou em nós. Virá a ser dito que nós não esperamos nele?

Deus depositou a sua esperança, a sua “pobre” esperança em cada um de nós, no mais ínfimo dos pecadores.

Virá a ser dito que nós, ínfimos, que nós, pecadores, vamos ser nós a não depositar a nossa esperança nele?

É essa riqueza do amor paternal de Deus a que se vê de forma tocante na parábola do filho pródigo. O filho menor abandona a casa paterna, comete pecado atrás de pecado, disparate atrás de disparate, e Jesus mostra-nos o seu pai, que simboliza Deus, encostado ao limiar da porta de casa, perscrutando o caminho, na esperança de ver um dia o filho voltar. E quando enxerga ao longe uma nuvenzinha de pó, o seu coração adivinha o retorno do filho, e quando já se aproxima aquele mendigo empoeirado, o pai já sabe que é ele, e, então, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o cobriu de beijos (Lc 15, 20). Bastou ao filho a boa vontade de arrepender-se, de voltar, de abrir o coração para dizer, com doída sinceridade: Pai, pequei contra o céu e contra ti… , para ser envolvido por todo o amor do pai.

Quem não sabe dizer pequei, esse não sabe dizer Pai! Porque só quem descobriu o amor de Pai que Deus nos tem pode dar-se conta de como lhe pagou mal tanto amor, de como o esqueceu, de como lhe desobedeceu, de como o ofendeu…., e então pode doer-se por amor, que é o verdadeiro arrependimento, a verdadeira contrição. Foi o sentimento que Pedro tinha no seu coração e que Jesus o ajudou a externar com palavras: Amas-me? –Amo-te…

Sem esse amor, infelizmente, nem chegamos a reconhecer os nossos pecados. Achamos uma desculpa para todos eles, a começar pela desculpa de dizer que nem sequer são pecados, que “eu não cometo pecados”, e assim fechamos o mal dentro da câmara escura do nosso coração e trancamos a porta à misericórdia de Deus, ao seu perdão.

Mais reflexos da misericórdia

Mas, como víamos, há um segundo ponto. Jesus, na praia, perguntou a Pedro: Amas-me mais do que estes? É o segundo ato de confiança de Jesus. O pecador que se arrepende de verdade, por amor, recebe a graça de Deus – normalmente mediante a confissão -, e, se corresponde a essa graça, pode chegar a uns cumes de santidade infinitamente maiores do que os abismos aonde se precipitou com o pecado. É o que aconteceu com Pedro, com Paulo, com Santo Agostinho e com tantos outros. E aí temos outro grande motivo de esperança.

Por isso, não tem o espírito cristão a pessoa que diz: “Eu já pequei tanto, caí tão fundo, fiz tantas barbaridades, que o máximo a que posso aspirar é a obter a duras penas o perdão de Deus e entrar no Céu por uma frestinha, como o último da fila, como o “patinho feio”, depois de ter ficado no purgatório até o fim do mundo…”. É uma maneira errada, nada cristã, de ver as coisas.

Isso está claro no caso de Pedro. Mas também fica patente na parábola do filho pródigo. Ao filho pecador que se arrepende, o pai cumula-o de tantos bens e tantas honras, envolve-o em tanta alegria, que provoca a inveja do irmão mais velho, trabalhador, honesto, mas egoísta e mesquinho. Convinha fazermos uma festa – retruca o pai -, pois este teu irmão estava morto, e reviveu; estava perdido, e foi achado (Lc 15,32). Este é o espírito de Jesus: Digo-vos que haverá mais júbilo no céu por um só pecador que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento (Lc 15,7).

Sim. Este é o espírito de Jesus. Será que é o nosso? Nós confiamos assim? Somos capazes de arrepender-nos assim? Somos capazes de fazer penitência, por amor, e de mudar com alegria e de recomeçar com vibração? Cristo deixou-nos um meio fácil e acessível: o Sacramento da Penitência, a confissão. Dele diz o Papa João Paulo II, na encíclica que antes citávamos: “Neste Sacramento, todos podem experimentar, de modo singular, a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado”.

E é também o Papa João Paulo II quem nos diz, com belas palavras: “A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, do seu amor fiel até às últimas consequências. O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia é a fonte constante e inexaurível de conversão” (Cf. Encíclica Dives in misericordia, nn. 44, 57, etc.)

Um último reflexo

Mas ainda nos resta dizer alguma coisa sobre o terceiro ponto. Jesus não só perdoa Pedro como o confirma naquela missão da máxima responsabilidade, que é ser o supremo Pastor da Igreja aqui na terra. Também aí a prova de confiança de Jesus é tão grande que dá à nossa esperança vibrações de alegria.

Eu penso que, aplicado a cada um de nós, isto nos diz: “Deus espera muito de você, por mais que a sua vida passada tenha sido um desastre. Não fique apontando baixo. Não coloque metas medíocres na sua vida cristã, na sua vida de intimidade com Deus, na sua oração, no seu apostolado, na sua dedicação ao bem material e espiritual dos seus irmãos. Seja audaz! Aponte muito alto, pois é aí, nas alturas, que Cristo – que o perdoou e voltará sempre a perdoar, se se arrepender – o espera”.

Aquele poeta antes citado contempla a vida dos filhos de Deus como um caminho ascendente, sempre subindo, sempre subindo, até chegar ao Céu. Ele imagina a fé, a esperança e a caridade como três irmãs, e diz que a esperança é a irmã menor, que parece fraquinha, mas que, na realidade, é a que arrasta com força irresistível as outras duas:

“No caminho ascendente, arenoso, incômodo,

na caminhada ascendente,

arrastada, pendurada dos braços das irmãs mais velhas,

que a levam pela mão,

a pequena esperança

avança.

E, no meio, entre as duas irmãs mais velhas, tem o ar de se deixar arrastar,

como uma menina que não tivesse forças para caminhar,

e que fosse arrastada pela estrada contra vontade.

Quando, na realidade, é ela que faz andar as outras duas,

E que as arrasta,

E que faz andar toda a gente,

E que a arrasta.

Força e grandeza da esperança cristã! É uma chama radiante que a ressurreição de Jesus faz arder no mais fundo do coração. O Papa diz que “Cristo ressuscitado é a encarnação definitiva da misericórdia, o seu sinal vivo”. Peçamos ao Senhor que, mesmo que tenhamos a desgraça de traí-lo muitas vezes, nos conceda a graça de não trairmos nunca a esperança, essa fabulosa esperança que Ele nos ganhou morrendo e ressuscitando, e que a nossa Mãe Maria, Mãe de misericórdia, nos ajude a mantê-la como um farol aceso.

Fonte: Padre Francisco Faus – adaptação de um capítulo do livro “Cristo, minha esperança”

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