Cento e vinte três dias! A última Santa Missa na Matriz Nossa Senhora da Saúde, em tempos de pandemia, foi celebrada no dia 19 de março de 2020, em uma quinta-feira de adoração.
De lá pra cá, restou-nos o vazio dos bancos, a saudade dos abraços, antes ou após as celebrações, e dos corais fazendo ecoar os nossos louvores ao Senhor.
Não sabíamos que levaria tanto tempo para nos reencontrarmos. Então, não demos aquele último abraço, nem falamos desse amor gratuito que sentimos por tantas pessoas que estavam ali todos os dias, servindo junto com o padre, auxiliando nas coletas, soltando as vozes nos corais, proclamando as Palavras de Vida e Salvação. Se soubéssemos, talvez tivéssemos demorado um pouco mais na prosa, apertado um tico a mais o abraço, dito dessa alegria pelo encontro diário ou semanal.
O hábito nos torna, muitas vezes, cegos para as imagens cotidianas. Vemos o outro, mas não o enxergamos mais. O que me faz atentar para o significado das “escamas” caindo dos olhos de Paulo.
Temos que reaprender a enxergar, sobretudo o próximo – qualquer que seja ele. Nunca nos foi atirado tão na “cara” a quantidade de “próximos” marginalizados em nosso país. A pandemia escancarou nossas mazelas.
Mazelas que a Igreja Católica, magnificamente na pessoa do Papa Francisco, tem denunciado desde que assumiu o pontificado.
Nunca, em tempo algum, qualquer geração que tenha chegado ao ano de 2020 poderia, ainda que em sonho, imaginar que as portas das igrejas seriam fechadas e que medidas tão restritivas seriam implementadas pelas próprias autoridades eclesiásticas. Que seríamos privados da comunhão com o Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não trocaríamos o abraço da paz, nem teríamos aquele momento para adorar, ajoelhados, Jesus Eucarístico.
Acontece que aconteceu: as portas da nossa igreja foram fechadas. Por uma excelente causa, diga-se: para preservar o dom da vida. Não acho que Jesus tenha se entristecido com essa medida tão severa, pelo contrário… consigo imaginá-Lo com um sorriso de canto de boca pensando: eles estão aprendendo.
Aprender com Jesus é discernir sua palavra. É saber o que é certo e errado e escolher fazer o certo. Quem não se lembra do “enfermo” que queria banhar-se na água, em pleno dia de sábado, para ser curado pelo “Anjo do Senhor” que fazia tremular as águas? Vem-me à lembrança a fala do doente:
“Senhor, não tenho quem me jogue na piscina, quando a água é agitada; ao chegar, outro já desceu antes de mim” Jo 5,7.
Claro que ele foi curado. Jesus é Aquele que tem piedade, que sente compaixão, que se comove, que enxerga o outro!
Na segunda-feira, dia 20 de julho, tivemos a oportunidade de ver dez bancos da Matriz ocupados. 10 bancos. 10 pessoas. Todos distantes, mas dentro do templo.
É difícil precisar os sentimentos: alegria, tristeza, medo. Tudo muito embolado.
Alegria, porque 123 dias é um tempo grande demais pra ver tantos bancos vazios. Tristeza, porque 123 dias é um tempo grande demais pra ver apenas 10 pessoas ocupando apenas 10 bancos de umas tantas dezenas que ainda continuam vazios. Medo, porque não sabemos quanto tempo mais celebraremos assim: a conta gotas de fiéis.
Fora isso, ainda uma preocupação absoluta para conferir se estava tudo dentro do “protocolo de segurança”: máscaras, álcool gel, tapete sanitizante, termômetro, pano de chão, rodo, microfones individuais, distância segura… Só mesmo Deus para suavizar este novo que será, ainda por muito tempo, a nossa rotina.
Teve aquele momento, de ver Jesus ali, não na Eucaristia, mas no crucifixo que fica no ponto mais alto do altar-mor da Matriz, em que pedi: tende misericórdia de nós! Porque somos pecadores e não o amamos o suficiente e como o Senhor merece. Tende misericórdia de nós, porque somos egoístas, porque, em boa parte das vezes, pensamos apenas em nós mesmos – esquecendo de nossos irmãos. Tende piedade de nós… porque ainda não aprendemos o que é ser verdadeiramente cristãos. Perdoai as nossas culpas porque somos humanos e a nossa humanidade não é redentora.
Durante a prece, logo fui tomada pela lembrança dos irmãos paraenses e senti um calor gostoso me tomar o peito. O que vivemos aqui, nossos irmãos já vivem há décadas. 123 dias, de repente, me pareceram pouco. Há irmãos que esperam 365 dias, ou mais, pela Sagrada Eucaristia e pelos outros sacramentos. Há irmãos que são enterrados, indiferentes de pandemias, enquanto as famílias choram esses mortos sozinhas – porque o sacerdote só voltará ali (com sorte) dali um ano.
E a gente reclamando de 123 dias sem a Eucaristia, sem poder celebrar na Igreja – quando tantos, nem templo possuem para nele celebrar.
A gente se sente no direito de reclamar porque tem tudo na mão. O que não podemos é fazer pirraça quando não podemos ter. Maturidade e compaixão é o que nos ensina Jesus. Aprendizado difícil, pra poucos. Sabedoria é mesmo graça do Espírito Santo em nossa vida. Paciência foi a palavra que Padre Paulo e Dom Marco Aurélio usaram para dizer do nosso Deus ao falar sobre o joio e o trigo. E a gente impaciente, pra adentrar a igreja.
Senti uma pontada, ao final da Santa Missa, quando o pároco falou: fico triste quando alguém diz que a gente não está deixando o fiel entrar na igreja… Não é o padre que decide isso. Não somos nós que decidimos isso. Não temos competência ou qualificação para decidir.
Diz o ditado: mais vale um passarinho na mão do que dois voando. Prefiro os dois voando porque nasceram pra isso, pra voar. É como ser povo de Deus: fugir do Egito, sobreviver às pestes e às guerras, ser perseguido e não negar a fé, enfrentar os obstáculos sem perder a fé; ser resistência diante das desigualdades e das afrontas à vida humana; não ser conivente com o erro; não ser tolerante com a mentira; mas tentar ser como Deus… ser paciente com aqueles que ainda não entendem o que está acontecendo.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – porque na alegria e na tristeza, na saúde e na doença… Ele está sempre conosco.
Liliene Dante