Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)
A Liturgia da Igreja Católica oferece à humanidade, como interpelação e convocação, a vivência da Quaresma, com o grande apelo nascido do coração de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. As comunidades de fé, em rede, ainda mais intensamente, se tornam escolas de espiritualidade comprometidas com a vida, dom sagrado e inviolável. São quarenta dias para investir, qualificadamente, no despertar da consciência de cidadãos e de cristãos, à luz do Evangelho de Jesus Cristo. No ciclo do Ano Litúrgico, a Quaresma possibilita a experiência de reformar o tecido do próprio coração, revestindo-o do mais alto e nobre sentido da misericórdia de Deus. Leva à melhor compreensão sobre o mistério da paixão e morte do Senhor Jesus no horizonte pascal, pela certeza da vitória da vida sobre a morte, do amor sobre todo ódio. O apelo do Mestre pela conversão de todos deve ecoar na interioridade de cada pessoa, para que a humanidade seja capaz de alcançar novas respostas, essenciais à superação de sentimentos que estão na contramão da fraternidade universal e da solidariedade.
A fraternidade universal e a solidariedade são urgentes para fecundar direitos humanos e resgatar a civilização contemporânea de lógicas perversas, a exemplo daquela imposta pelo mercado – frio e calculista – e superar sentimentos que manipulam perigosamente o coração, como preconceitos e a busca por vingança. Não há discipulado sem conversão diária, profunda, pela aprendizagem de dinâmicas ensinadas e celebradas durante o tempo quaresmal. O apelo de Jesus, “Convertei-vos e crede no Evangelho”, exige, de cada um, o gesto humilde de aceitar os limites humanos. Trata-se de passo essencial no caminho rumo à purificação, para vencer sentimentos que alimentam disputas, vinganças e indiferenças. A vivência da Quaresma contribui para combater perspectivas que estreitam o ser humano na mesquinhez, inviabilizando a prevalência do respeito nas relações.
A Quaresma aponta o caminho de uma humanização espiritual e afetiva. A sua vivência contribui para a superação de muitas situações tristes, a exemplo daquelas em que pessoas capazes de promover importantes iniciativas pela sua inteligência, competência na gestão de processos, com significativa participação na história de instituições, se apequenam quando são contaminadas por sentimentos de apego, mesquinhez ou ingratidão. Oportuno e sábio é acolher o horizonte indicado por Jesus – buscar a conversão e a vivência do Evangelho. Trata-se de uma pérola preciosa encontrada no Sermão da Montanha, carta magna do cristianismo, narrada pelo evangelista Mateus.
Do quinto ao sétimo capítulo do Sermão da Montanha, dentre outros aspectos, merecem atenção as referências à prática do jejum, da esmola e da oração, com propriedades para requalificar a condição humana que facilmente se distancia de valores e princípios essenciais a uma vida mais equilibrada. O jejum remete o discípulo a uma conduta contrária ao tratamento soberbo e arbitrário dos bens da criação, despertando o compromisso social e político para efetivar uma organização da sociedade onde se respeite e se promova o bem como direito inalienável de todos. A esmola diz respeito ao sentido da solidariedade como expressão da nobreza no coração humano, deixando-se incomodar, em todos os sentidos, pela condição miserável e excludente de muitos irmãos e irmãs. A oração é a experiência única e insubstituível para alcançar o coração de Deus, estabelecendo um diálogo com o Pai, educando-se para enxergar o mundo e o próximo a partir da perspectiva do Criador.
Acolher a interpelação da Campanha da Fraternidade contribui para bem viver o tempo da Quaresma. Em 2023, a Campanha da Fraternidade adverte para a grave situação daqueles que estão no mapa da fome e da insegurança alimentar, sublinhando um apelo de Jesus Mestre: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. A palavra do Mestre interpela seus discípulos a vivenciarem uma nova lógica: a solidariedade. Sem solidariedade, persistirá o problema da fome, não solucionado pela hegemonia de outras lógicas e interesses que estão na contramão de uma adequada cidadania e da genuína vivência do Evangelho. Neste tempo da Quaresma, sejam acolhidos os apelos do Salvador e Redentor. Promova-se a lógica da solidariedade cuja raiz está na grandeza da misericórdia de Deus, o Pai de todos, constituída pelo princípio intocável de que todos são irmãos e irmãs. O convite a todos é para que se engajem na vivência do tempo quaresmal, fecundados pelo silêncio da escuta do Evangelho e dos clamores dos pobres. Todos se atentem para os apelos da Quaresma, nascidos no coração misericordioso de Deus.
Fonte: CNBB