Amós, um profeta cheio de ousadia

Foto de Jan Kopřiva na Unsplash

“Que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso” (Am 5,24).

 

Por Frei Ludovico Garmus, OFM

Na introdução do livro (Am 1,1) a profecia de Amós é colocada no tempo de Ozias (Azarias), rei de Judá (767-739 a.C.) e de Jeroboão II, rei de Israel (782-753 a.C.). O redator da introdução não menciona palavras de Amós, mas fala de visões que o profeta teve “dois anos antes do terremoto”. Não sabemos exatamente quando aconteceu o terremoto, apesar de ser lembrado pelo profeta Zacarias (14,5). A Síria e a Palestina estão sujeitas a terremotos provocados pelo movimento de placas tectônicas. Na Bíblia o terremoto é considerado um poderoso sinal de manifestação divina (Ex 19,18; Am 8,8; 9,5; Mt 24,27,51).

Amós é o primeiro profeta “escritor”. Antes dele temos o grande profeta Elias, mas não deixou oráculos ou pronunciamentos por escrito. As narrativas sobre Elias constam nos Livros dos Reis (1Rs 17,1–19,21; 21,1–29; 2Rs 1,1–2,25). Elias denunciava os crimes e a idolatria do rei Acab de Israel (874-853 a.C.), ameaçando-o com castigos divinos que haveriam de marcar o fim de sua dinastia (1Rs21,17-24; 21,29-38). As palavras de Amós, porém, são muito mais contundentes. Além de denunciar os crimes do rei e da elite dominante, anuncia o fim próximo do reino de Israel: “Jeroboão morrerá pela espada e Israel será deportado para longe de sua terra” (7,13). Prevê, portanto, o fim de Israel como nação e como povo eleito: “Chegou o fim para meu povo de Israel” (8,2).

Amós, um profeta ligado aos problemas de seu tempo

Amós é apresentado como “um dos pastores de Técua”, uma localidade a 20 km de Jerusalém, ao sul de Belém (Am 1,1). Além de pastor de ovelhas e cabras Amós vivia também do cultivo de figueiras selvagens (fícus). Seus frutos depois de serem pungidos para tirar seu suco leitoso são comestíveis quando secos (7,14). Enquanto pastor, Amós percorria os santuários, como Bersabeia, Guilgal e Jerusalém, o que lhe possibilitava alguma eventual venda de ovelhas para os sacrifícios. Em busca de pastagens para o rebanho, Amós ignorava os limites políticos e frequentava também o vizinho santuário de Betel, considerado santuário de Jeroboão, rei do Israel (7,13). A frequência aos santuários ajudou a desenvolver o talento poético e literário de Amós. As conversas com os colegas pastores e os agricultores, explorados pelos comerciantes das cidades, apuraram o senso crítico do profeta em relação à sociedade injusta em que vivia. Era gritante o descaso dos governantes com o sofrimento do povo mais pobre, e sua cegueira frente às ameaças sempre mais evidentes do Império Assírio.

O livro de Amós

A organização atual do livro deve-se ao trabalho redacional do próprio profeta ou, mais provável, de outros redatores. A primeira parte (Am 1,3–2,16) é uma coletânea de oito oráculos contra os povos: Damasco, Filisteia, Tiro, Edom, Amon, Moab, Judá e Israel. Estes oráculos são introduzidos cada vez pela fórmula “por causa do triplo e do quádruplo crime de”. A denúncia aos povos vizinhos refere-se basicamente à violação dos “direitos humanos”, cometida pelo exército dos respetivos povos: violência das guerras, venda de escravos, deportação de populações, violência e extermínio de mulheres grávidas. Já a acusação contra Israel e Judá inclui a violação da aliança, idolatria, desobediência aos mandamentos, mentira, corrupção, venalidade dos juízes e injustiça contra os pobres (2,4-16).

A segunda parte (3,1–6,14) contém oráculos com denúncias e ameaças contra os dirigentes de Israel por causa dos crimes cometidos contra o povo pobre, além de críticas ao falso culto que se praticava, críticas aos juízes que vendiam sentenças em favor dos ricos e em prejuízo dos pobres. A terceira parte do livro (7,1–9,15) reúne materiais de caráter biográfico (7,10-17) e as visões do profeta de caráter autobiográfico (7,1-9; 8,1-3; 9,1-4). O livro de Amós se encerra com uma promessa de restauração. Trata-se de um acréscimo posterior, pois inclui Israel e Judá (9,11-15). A organização final do livro inclui oito oráculos contra as nações e mais vinte e sete contra Israel.

Amós, o porta-voz de Deus junto ao povo

A pergunta que surge é como um simples pastor e cultivador de sicômoros tornou-se profeta? Como um profeta, vindo de Judá, ousa anunciar o fim do reino de Israel, que Jeroboão morrerá pela espada e o povo de Israel será deportado para longe de sua terra? Por isso Amasias, sacerdote de Betel, mandou um recado ao rei: “Amós conspira contra ti dentro da casa de Israel; o país já não pode suportar todas as suas palavras” (7,10-11). O santuário de Betel fazia parte da casa, isto é, do palácio real. Ao mesmo tempo o sacerdote expulsou o profeta: “Foge para o país de Judá; come lá o teu pão e profetiza lá”. Amós respondeu: “Não sou profeta nem filho de profeta; eu sou criador de ovelhas e cultivador de sicômoros. Mas o Senhor tirou-me de junto do rebanho e me disse: Vai, profetiza ao meu povo Israel”. Amós não precisava ganhar a vida como outros profetas a serviço do palácio; esses viviam às custas do rei e só diziam o que lhe agradasse. São bem conhecidos tais grupos de profetas a serviço do rei Acab, já antes, no tempo do profeta Elias (cf. 1Rs 18,21-29; 22,1-12). Amós, ao contrário, apresenta-se como porta-voz do Senhor Deus, para o “meu povo Israel”.

Amós, porta-voz do povo junto a Deus

Na primeira visão Deus faz ver a Amós uma invasão de gafanhotos que avança sobre o país e devora o feno da segunda safra. A primeira colheita de feno era destinada aos cavalos do exército do rei; o camponês ficava com a “safrinha”, sempre menor e incerta (7,1-3). Com isso, a invasão de gafanhotos acabaria com o pouco que sobrava para os animais do camponês. Solidário com os pobres, Amós reage: “Senhor Deus, perdoa, eu te peço! Como poderá Jacó (Israel) resistir? Ele é tão pequeno!” E Deus desistiu do castigo. Na segunda visão o profeta percebe que Deus ameaça castigar o povo por meio de uma severa seca (7,4-6). As águas do Oceano se aqueceram, veio um grande fogo e devorou os campos. Novamente o profeta intercede pelo povo e Deus suspende o castigo. As duas primeiras visões representam ameaças para a agricultura, principal base de sustento da economia de então.  Na terceira visão (7,7-9) o próprio Senhor se faz ver a Amós. Ele vê o Senhor de pé em cima de um muro, com um fio de prumo na mão, e diz ao profeta: “Eu vou colocar um fio de prumo no meio de meu povo, Israel; não tornarei a perdoá-lo”. O fio de prumo é um símbolo do julgamento divino (Is 30,13; 34,11; cf. Jr 1,10). Então, Amós deixa de interceder e passa a denunciar os crimes das elites governantes e anunciar os castigos divinos, que atingirão também os mais pobres. Torna-se agora o porta-voz do povo enquanto dá voz aos pobres e injustiçados e leva seus gritos de aflição até Deus (cf. Ex 2,11–3,10). Sem dúvida, muitos dos empobrecidos gostariam de fazer as mesmas denúncias. Vendo o sofrimento dos camponeses explorados e ouvindo suas queixas, o profeta torna-se também porta-voz de Deus contra os opressores do povo. Amós, convivendo no meio do povo sofrido, escutou a voz de Deus como um rugido de leão: “Um leão rugiu, quem não temerá? O Senhor Deus falou, quem não profetizará” (3,8)?

Acusações e ameaças a Israel

Israel se considerava o povo preferido de Deus. Libertou Israel da escravidão do Egito e com ele fez uma aliança no deserto (Ex 19,1–24,11), cumprindo as promessas feitas a Abraão (Gn 12,1-3.7). Pela aliança Israel devia ser fiel à Lei do Senhor, sintetizada nos dez mandamentos (Ex 20,1-17). Os mandamentos visavam garantir ao povo, antes escravo no Egito, a liberdade de servir e adorar unicamente ao Senhor. Mas o que Amós via em Israel era um povo novamente escravizado. A elite governante explorava os camponeses, o culto nos santuários era falso e a aliança com Deus era continuamente violada. Imperava a violência contra os mais fracos. A aliança previa a punição do povo eleito em caso de violação. Então Amós assim fala em nome de Deus:

“Ouvi a palavra que o Senhor falou contra vós, israelitas, contra toda tribo tirou do Egito: ‘De todas as tribos da terra só a vós conheci, por isso eu vos castigarei por todos os vossos delitos’” (3,1-2).

O povo de Israel tinha consciência de ser o povo que Deus escolheu para si entre todos os outros povos da terra. Pela aliança, Israel se comprometeu a observar os mandamentos da aliança: “Faremos tudo o que o Senhor nos disse” (Ex 24,3). Em caso de repetida desobediência aos mandamentos, os termos da aliança garantiam a Deus o direito de punir seu povo (cf. Am 2,6-16; 7,1-9; Dt 28,15). O julgamento divino começará pelo lugar mais sagrado, o santuário e o altar (9,1-6), considerados o lugar mais seguro para alguém perseguido pela justiça se refugiar (cf. 1Rs 1,49-53). Deste modo, não haverá mais nenhum lugar de refúgio para os culpados. Eles serão perseguidos pela justiça divina, tanto na morada dos mortos, como nos montes ou até no fundo do mar (Am 9,1-4). O reino de Israel deixará de existir (9,8) e o povo será tratado como outras nações, como os filisteus e os arameus, que também foram deslocados de suas terras. As elites governantes perecerão: “Morrerão pela espada todos os pecadores do meu povo, os que diziam: ‘A desgraça não se aproximará, nem nos atingirá’” (9,1-6.10b). O povo será disperso no exílio, mas Deus não vai exterminar totalmente a casa de Jacó, como diz um acréscimo posterior (9,6-10a).

Os pecados de Israel

Já sabemos quem são os pecadores “do meu povo”, mas falta especificar seus pecados. Nos livros proféticos, os oráculos de salvação não exigem motivação. Deus perdoa e salva porque é bom, sem mérito nenhum nosso. Ele antecipa-se até mesmo à conversão do pecador, porque é misericordioso (cf. Am 9,11-15). O acusado, porém, precisa saber por qual crime será punido. Por isso os oráculos que anunciam castigo sãos acompanhados dos motivos da punição.

Vimos acima que os pecados dos povos vizinhos de Israel se referem de modo geral à violação dos “direitos humanos”, em tempos de guerra. A mesma acusação vale também para Israel e Judá, cercados por esses povos. Como povo escolhido por Deus, Israel e Judá estão vinculados pela aliança a observar os mandamentos e as leis que regulam as relações internas e sua relação com Deus. Por isso, as acusações contra Israel dizem se referem aos pecados contra Deus e contra as pessoas que fazem parte da mesma aliança.

Quais são os crimes de Israel? 

As acusações iniciais já apontam alguns dos crimes que ofendem gravemente ao Senhor (Am 2,6-8). As vítimas são sempre os mais fracos. Para eles a justiça não funciona: “Vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias… Pai e filho vão à mesma jovem, profanando o meu santo nome”. Em caso de dívida, o juiz era capaz de penhorar até um par de sandálias do pobre ou obrigar o devedor a entregar ao credor sua própria filha como escrava sexual do pai e de seu filho. Usavam vestes penhoradas, que deviam ser devolvidas ao pobre no final do dia (cf. Ex 22,25-26), para usá-las no culto junto aos altares dos ídolos, onde bebiam o vinho também confiscado por dívidas.

As nações vizinhas, denunciadas pelas violências e extermínios das guerras, terão seus palácios consumidos pelo fogo (1,4-14; 2,2-5). O mesmo castigo cairá também sobre Israel (6,8). Porque o palácio do rei e as mansões da elite governante são a expressão gritante do acúmulo de bens e regalias à custa da exploração dos pobres camponeses. Era a capital Samaria que concentrava as riquezas injustas (3,9–4,3): “Reuni-vos na montanha de Samaria e vede as numerosas desordens dentro da cidade, as violências em seu meio” (3,9-10). É nos palácios que se “amontoam opressão e rapina”. A vida de luxo na Capital, os leitos de marfim e divãs de Damasco, as casas de inverno e de verão ou até mansões decoradas a marfim (3,12-15; 6,3) eram a expressão mais escandalosa da  exploração dos pobres (4,1). A classe dirigente de Samaria refestelava-se com ricos banquetes regados a vinho, ungia-se com preciosos perfumes, mas não se importava com a ruína do país (6,4-6).

Amós lança severas críticas contra os juízes que aceitavam suborno em prejuízo dos pobres: “Eles transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça” (5,7; 6,12); “Eles odeiam quem repreende no tribunal e detestam quem fala com sinceridade” (5,10); “Vós hostilizais o justo, aceitais suborno e repelis os pobres no tribunal” (5,12).

Críticas aos comerciantes

O camponês produzia cereais, como trigo, cevada e feno. Mas a primeira colheita do feno era confiscada pelo rei, e ao camponês sobrava a segunda colheita, a “safrinha”. Quando vendia o trigo na cidade era roubado por falsos pesos “oficiais”. Se ele produzia apenas feno, precisava comprar trigo para fazer o pão em casa, era também roubado nas medidas “padronizadas” de fundo falso. Mas ele precisava comprar também utensílios para o trabalho no campo, além de vestes, vasos, sandálias e ferramentas. Explorado como era, acabava tendo parte da próxima safra penhorada por dívida. Por sua vez, o pequeno artesão da cidade que produzia utensílios, ferramentas ou tecidos, também precisava comprar trigo ou outros cereais e era explorado pelos mesmos comerciantes. É o que podemos imaginar diante das irônicas e contundentes críticas dirigidas por Amós aos comerciantes:

Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e quereis eliminar os humildes do país. Vós que dizeis: “Quando passará a lua nova, para que possamos vender o grão, e o sábado, para que possamos vender o trigo, para diminuir a medida, aumentar o preço e falsificar as balanças para enganar, para comprar os indigentes com prata e o pobre com um par der sandálias, para vender até os refugos do trigo” (Am 8,4-6)?

Os comerciantes não suportavam os dias festivos da lua nova e do sábado, quando o comércio parava e se prestava culto ao Senhor. Ao contrário, nesses dias planejavam como aumentar os lucros no dia seguinte. Amós é o primeiro dos profetas a criticar o falso culto em Israel e Judá. O culto praticado pelos que esmagavam o pobre ofendiam ao Senhor:

“Ide a Betel e pecai! A Guilgal e multiplicai vossos pecados! Pela manhã vossos sacrifícios e ao terceiro os dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor, proclamai oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é disso que gostais, israelitas” (4,4-5)!

No entanto, a frequência aos santuários e os sacrifícios oferecidos por mãos injustas, que os israelitas gostavam de oferecer, eram rejeitados por Deus:

“Odeio, desprezo vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque … não me agradam vossas oferendas e não olho para os sacrifícios de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, não quero ouvir o som de tuas harpas. Antes, que o direito corra como a água e a justiça como rio caudaloso” (5,21-24)!

O Dia do Senhor

Como ameaça de castigo, Amós recorre à imagem do Dia do Senhor (Javé), dia da “visita” de Deus a seu povo. Tal dia era experimentado como intervenção divina na história de seu povo, muitas vezes como salvação. Mas os profetas, entre o VIII e IV século, recorrem à ideia do Dia do Senhor, como visita de Deus para punir as infidelidades de Israel contra a aliança. A primeira ameaça de Amós já contém esse pensamento: “De todas as tribos de Israel só a vós conheci, por isso eu vos castigarei por todos os vossos delitos” (3,2). Em razão de todos os pecados contra o pobre Israel já não pode mais contar com a proteção divina: “Ai dos que desejam o dia do Senhor! Para que vos servirá o dia do Senhor? Ele será trevas e não luz” (5,18)! Nesse dia nem mesmo o altar do santuário poderá servir de refúgio ao pecador (cf. 1Rs 1,49-53), porque Deus destruirá o altar e perseguirá o culpado até mesmo no exílio (Am 9,1-4).

Possibilidade de salvação

Como se vê no texto acima, o as denúncias de Amós e as ameaças de punição se dirigem, sobretudo, aos que cometem injustiças contra os pobres e inocentes, que também serão atingidos pelas desgraças anunciadas. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva (cf. Ez 18,31-32). As denúncias e ameaças são acompanhadas do convite à conversão do pecador. Não basta frequentar santuários e oferecer sacrifícios, antes é preciso converter-se, voltar a ser fiel ao Senhor: “Procurai-me e vivereis! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal nem passeis por Bersabeia.. Procurai o Senhor e vivereis!” (5,4-6). Mas como procurar o Senhor? E o profeta acrescenta: “Procurai o bem e não o mal… Odiai o mal e amai o bem, estabelecei o direito no tribunal” (5,14-15).

Mensagem de Amós e a ecologia

Pode parecer estranho ver uma relação entre o texto de um livro profético e a ecologia. O termo ecologia foi usado pela primeira vez por Ernst Haeckel, biólogo alemão, no séc. 19. Todos os seres vivos se desenvolvem num ambiente favorável à vida. Este ambiente é a casa dos seres vivos. A ciência que estuda os ambientes favoráveis à vida é a ecologia, a ciência da casa dos seres vivos, ligada à biologia. Amós e os profetas depois dele, quando anunciam castigos divino a quem desobedece aos mandamentos e leis de Deus, expressam as punições pela natureza adversa à vida (cf. Gn 3,14-19). Na Bíblia a natureza é considerada criação divina. E o Deus da aliança se manifesta ao ser humano na criação, como bênção na fartura de bens quando é fiel, ou como calamidade, quando é infiel ao criador (cf. Lv 26,3-22; Dt 28,1-68).

A primeira visão (Am 7,1-3) do profeta revela um desequilíbrio da natureza: na ausência do predador natural dos insetos, o número deles torna-se uma “praga” que afeta a agricultura. Esta visão inclui também uma ironia. Primeiro vem o predador mais perigoso ao agricultor, isto é, a monarquia que sequestra o melhor da colheita. Em seguida vem o enxame de gafanhotos que deixam o camponês na penúria. Na segunda visão o profeta vê Deus convocando um julgamento (7,4-6) pelo fogo, um fogo que devora o grande Oceano e os campos. Na cosmologia de então a terra era cercada pelas águas do mar e sustentada por gigantescas colunas. A água do Oceano se comunicava com as águas por cima da abóboda celeste. Na abóboda do céu havia pequenas “comportas” que Deus abria para enviar chuva, granizo, neve ou vento sobre a terra. Essas águas “de cima” abasteciam também as nascentes sobre a terra (cf. Gn 7–9; Sl 104). A ameaça da segunda visão indica, portanto, um profundo abalo na ordem da natureza/criação, provocada pela maldade humana.

Por isso o povo de Israel é intimado a encontrar-se com seu Deus: “Israel, prepara-te para encontrar o teu Deus (Am 4,12). Três fragmentos de um hino, incluídos posteriormente, explicitam que o Deus de Israel é o criador do universo (4,13; 5,8-9; 9,5-6). Diante dele Israel deverá prestar contas de suas ações. O primeiro texto liga diretamente à criação:

“Porque é ele quem forma as montanhas e cria o vento, quem revela seu pensamento aos seres humanos, quem transforma a aurora em trevas e quem caminha sobre os cumes da terra, Senhor Deus Todo-poderoso é o seu nome”.

Os verbos “formar” e “criar” remetem aos relatos da criação (cf. Gn 2,7; 1,1). O segundo fragmento de hino é inserido no contexto de uma acusação contra os que “transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça” e enriquecem à custa dos pobres (Am 5,7.10-13). O texto mostra que o Criador pode usar a força da natureza/criação para punir os pecadores, como o fez no dilúvio (Gn 6,5-7):

“Ele que faz as Plêiades e o Órion, que transforma as trevas em manhã, que escurece o dia em noite, que convoca as águas do mar e as despeja obre a face da terra, Senhor é o seu nome! Ele lança devastação sobre quem é forte, e a devastação atingirá a fortaleza” (Am 5,8-9).

E a “devastação que atingirá a fortaleza” será terrível. Atingirá os que vivem tranquilos em Sião/Jerusalém ou se sentem seguros em Samaria (Am 6,1). Os que não praticam a justiça e se apoiam num falso culto serão eliminados (9,1-4) e a ordem da criação será restabelecida:

“O Senhor Deus Todo-poderoso, aquele que toca a terra e ela vacila e ficam de luto os que nela habitam; ela se levanta toda como o Nilo e depois desce como o Nilo do Egito. Aquele que constrói nos céus a sua escada e firma na terra a sua abóboda; aquele que chama às águas mar e as derrama sobre a face da terra, Senhor é o seu nome” (9,5-6).

O Senhor neste hino é Javé (Ihweh), o criador do mundo, do céu e da terra. Ele fixa a abóboda celeste e separa o mar da terra firme (cf. Gn 1,6-10). É Ele quem controla as águas que estão “acima” do firmamento celeste. Ele abre as “comportas” e envia a chuva necessária para a vida na terra. Quando fecha as comportas provoca as secas (Am 7,1-6), mas quando as abre totalmente, castiga a maldade humana (Gn 7,1-5).

Concluindo

Percebe-se em Amós uma relação entre as injustiças praticadas pelos poderosos contra os pobres e a natureza, vista como criação. Se a sociedade é injusta, sofrem tanto os pobres com a natureza, e vice-versa. Como razão diz o Papa Francisco na Laudato Si:

“Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS, n. 49).

Mais adiante o Papa lembra a violência de Caim contra seu irmão Abel. Cometido o crime, Deus o interpela: “Que fizeste? … Agora serás amaldiçoado pelo próprio solo que engoliu o sangue de teu irmão, derramado por ti. Quando cultivares o solo, ele te negará o sustento e virás a ser um fugitivo, errante sobre a terra (Gn 4,10-12). O descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra (LS 70). No Cap. IV, “Uma ecologia integral”, o Papa Francisco aprofunda a relação existente entre todos os seres vivos da terra (LS, n. 137-162). Nós somos parte do ambiente em que vivemos pois tudo está interligado: “Se tudo está relacionado, também o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade de vida humana: toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais” (LS, n. 142).

Hoje temos leis ambientais para preservar a vida na natureza. Multiplicam-se as “cúpulas” mundiais, reunindo cientistas e representantes oficiais das nações para enfrentar a crise climática. Formulam-se acordos e se estabelecem metas a serem atingidas para diminuir a emissão de gases e conservar uma temperatura saudável para a vida no planeta. No entanto, as metas não são atingidas. A cada ano que passa as temperaturas aumentam, os oceanos se aquecem e os incêndios florestais multiplicam-se assustadoramente (cf. Am 7,4-6). Amós critica a elite governante de Israel que “vivia tranquila” em Samaria, sem preocupar-se com a ruína próxima da nação (Am 6,4-6). A crítica vale para os governantes das potências mundiais de hoje, que não percebem o perigo iminente de acabarmos com a vida no planeta Terra.  A Encíclica Laudato Sì é um veemente apelo dirigido às Igrejas cristãs, às grandes religiões e a toda a humanidade para salvar a vida na Terra. A exemplo do profeta Amós, o Papa Francisco levanta sua voz crítica à sociedade injusta de nosso tempo. Se fizermos uma verdadeira conversão ecológica, respeitarmos o próximo e todas as criaturas, o Deus bondoso e amante da vida terá compaixão de nós e nos salvará com toda a criação. Mas teremos de fazer o esforço inadiável para salvar a vida em nossa Casa Comum, a Terra. Precisamos fazer uma “conversão ecológica”.

Fonte: Franciscanos


FREI LUDOVICO GARMUS, OFM,é professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

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