Amizade e espiritualidade

Por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém (PA)

 

Qual é a contribuição da fé para a experiência da amizade? Como a espiritualidade contribui para a promoção da sustentabilidade da amizade? Encontramos na Sagrada Escritura muitas pistas importantes que nos apresentam a importância da vida espiritual para o enriquecimento e fortalecimento da amizade.

  1. A natureza da experiência religiosa

A experiência religiosa é, por si mesma, um convite à transcendência; é reconhecimento de que o ser humano não basta a si mesmo; é abertura e encontro com o “totalmente Outro” como bem refletiu o teólogo Karl Barth. Aderir a Deus, é ir ao encontro do mistério daquele que é plenamente diferente dos parâmetros humanos, totalmente gratuito, amigo por excelência da humanidade.

Essa experiência religiosa nos convida necessariamente à abertura aos outros e a estabelecer com eles uma relação autenticamente alicerçada no amor. Essa é a primeira condição para a amizade. Portanto, quem tem fé, naturalmente deveria declarar-se aberto para acolher, encontrar e interagir positivamente com os outros.

A experiência religiosa leva o ser humano a conectar-se à fonte da sua origem, Deus que é Amor. Quem está ligado ao amor divino, recebe a força suficiente para transcender-se, descentralizar-se e, assim possivelmente fazer a experiência da compaixão, da solidariedade, do perdão, da tolerância, da fidelidade criativa.

O Espírito de Deus é Amor sem medida que estimula o homem a superar-se, abrindo-se ao fenômeno da amizade e o capacita para a reciprocidade, bondade, comunhão, cuidado, responsabilidade para com o outro. A espiritualidade enquanto dinamismo de vida consequente do Amor de Deus, nos fortalece para estabelecer autênticas experiência de amizade. Na comunidade Divina está a plenitude da Amizade.

Na perspectiva religiosa, percebemos que a amizade não é simplesmente produto da vontade e da liberdade humana, mas é sobretudo, manifestação da vontade de Deus. No Antigo Testamento o fiel judeu era chamado a “amar a Deus sobre todas as coisas e o seu próximo como a si mesmo” (Lv 23,22); o profeta Isaías denunciou a prática da religião ligada à injustiça, opressão e desonestidade (cf. Is 1,10-17), portanto, era uma vida religiosa destituída de amizade e espírito ético.

No Novo Testamento, Jesus não coloca como critério o amor a si mesmo, mas o seu amor para com a humanidade: “O meu mandamento é este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês. Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos. Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu estou mandando” (Jo 15,22-23).

A prática da amizade não é somente um valor humano natural, mas também é um compromisso que brota da experiência da fé. Há uma íntima conexão entre fé e ética, como acena São Tiago: “Se alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,25-26).

  1. A vida espiritual é frutuosa

Há na Sagrada Escritura uma grande abundância de referências sobre a relação entre a fé e a prática da Caridade, da amizade, da solidariedade, da justiça, da compaixão. Certo, é que a fé não pode ser uma experiência vazia, puramente intelectual. Trata-se de uma energia interior que deve qualificar a existência do fiel na sua totalidade de dimensões. Assim diz São Paulo aos tessalonicenses: “Que o próprio Deus da paz os santifique por completo. Que todo o espírito, a alma e o corpo de vocês sejam preservados irrepreensíveis na vinda do nosso Senhor Jesus Cristo” (1Tss 5,23).

Jesus, na parábola da videira e seus ramos, deixou claro que não queria que seus discípulos vivessem numa esterilidade de vida. “Fiquem unidos a mim, e eu ficarei unido a vocês. O ramo que não fica unido à videira não pode dar fruto. Vocês também não poderão dar fruto, se não ficarem unidos a mim” (Jo 15,4-5). A qualidade de vida do discípulo depende da intimidade da sua relação com Mestre. O fruto ao qual Jesus se refere é a prática do amor. Essa é a condição da Alegria e da Glória do discípulo, do próprio Jesus e do Pai. “A glória de meu Pai se manifesta quando vocês dão muitos frutos e se tornam meus discípulos” (Jo 15,8). O apóstolo Paulo, na carta aos Gálatas, afirma que “o Fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gl 5,22-23). Todas essas virtudes compõe a grande moldura do dinâmico quadro da amizade.

São João aprofunda essa relação entre Fé e Amor. “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,7-8). “Se alguém diz: «Eu amo a Deus», e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20-21).

Também São Paulo em suas diversas cartas aprofunda essa relação inseparável entre fé e amor: “Irmãos, acima de tudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14-15). “Eu… vos exorto a caminhardes de acordo com a vocação que recebestes: com toda a humildade e mansidão, suportando-vos uns aos outros com paciência, no amor. Aplicai-vos a guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz” (Ef 3,1-4). Na comunidade onde falta o espírito amistoso que brota da fé, há “discórdia, inveja, animosidades, rivalidades, maledicências, falsas acusações, arrogância, desordens” (2Cor 12,20). O crescimento integral do discípulo de Jesus só é possível quando ele está alicerçado no amor (cf. Ef 4,18-19).

O espírito amistoso é carregado de senso de responsabilidade pessoal e corresponsabilidade comunitária, como bem reflete São Paulo: “Carregai os fardos uns dos outros…” e “cada qual tem que carregar o seu próprio fardo” (Gl 6,2.6).

  1. Compromisso de conversão permanente

A fé compromete o fiel discípulo de Jesus num permanente processo de crescimento custoso que lhe exige perseverança no exercício do amor: “Não desanimemos de fazer o bem” (Gl 6,9). Essa prática do bem deve ser sincera (cf. 1Pd 1,22). Na carta aos Romanos São Paulo nos apresenta uma longa lista de atitudes recheadas do espírito caridoso que deve caracterizar o comportamento do cristão: o amor sincero, a rejeição do mal, o afeto fraterno, o carinho recíproco, a mútua estima, o zelo no serviço, o fervor de espírito, a alegria, a paciência, a solidariedade, a hospitalidade, a harmonia, a humildade, a tolerância (cf. Rm 12,9-20). E conclui dizendo: “Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem” (Rm 12,21).

A espiritualidade cristã purifica os desejos e fortalece a afetividade dando-nos condições para a amizade porque nos educa e canaliza os nossos impulsos para o bem nos livrando de viver dominado pelas paixões desordenadas. São Pedro nos exorta dizendo: “afastai-vos das humanas paixões, que fazem guerra contra vós mesmos” (1Pd 2,11). Paixões desordenadas são movidas pelos instintos e desprovidas da hierarquia de valores éticos, por isso, nelas não há espaço para a amizade. Por isso, a sabedoria nos pede o cultivo do autodomínio e da sobriedade (cf. Eclo 18,30-33). Nesse horizonte de equilíbrio está também a continência verbal, como reflete São Pedro: “quem quer amar a vida e ver dias felizes, guarde a sua língua do mal e seus lábios de falar mentiras” (2Pd 3,10-11).

A espiritualidade contribui para a experiência da amizade porque a fé cristã é chamada a ser virtuosa: “Façam esforço para pôr mais virtude na fé, mais conhecimento na virtude, mais autodomínio no conhecimento, mais perseverança no autodomínio, mais piedade na perseverança, mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade” (2Pd 1,7-8).

Enfim, a espiritualidade contribui para a experiência da amizade porque é um dinamismo de vida que brota das inseparáveis virtudes da fé, esperança e caridade; elas nos possibilitam a vivência de todas as virtudes e atitudes que compõem os conteúdos da amizade: confiança, diálogo, partilha, cuidado, reciprocidade, solidariedade, compaixão, perdão, generosidade etc. Amigos que são alimentados pela fé tem mais condições para a superação dos obstáculos, firmeza para conservarem-se frutuosos, predisposição para o perdão e a fidelidade.

PARA A REFLEXÃO PESSOAL:

  1. O que significa a frase de Jesus: “sem mim vocês nada poderão fazer” (Jo 15,5)?
  2. Quais frutos do Espírito Santo fazem parte da experiência da amizade?
  3. Por que o dinamismo dos instintos e das paixões desordenadas atentam contra a amizade?

Fonte: CNBB Norte2

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