Além do Natal: um Natal incômodo!?

"Natividade" - pintura sacra de Josefa de Óbidos - domínio público em Wikipédia

Por Dom Pedro Brito Guimarães
Arcebispo de Palmas/TO

 

Chegamos a mais um Natal ou, como queira, a menos um Natal. O tempo sabe passar. Aliás, o tempo é passagem. Ele existe para e por causa disto. “A única coisa permanente é a mudança” (Heráclito). Nós é que não queremos ou não sabemos passar e mudar. Mesmo contra a nossa vontade, passamos e passaremos, pois, somos todos passageiros. Por causa disto, gosto muito desta pequenina palavra: “além”. Tudo na vida pode ser visto na ótica do além. Inclusive o Natal. 

O Natal é o evento comercial mais esperado pelo mundo dos negócios. Tudo se vende e se compra, e muito, com a marca, o gosto, o cheiro, os símbolos, as cores e o preço do Natal.  

O Natal é antecedido, de quatro dias, pela chegada do verão. O nosso Natal tropical cai em pleno verão. É que, em cada Natal, “do alto, nos visitará o sol nascente, para iluminar os que estão nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1,78-79). Para nós o Menino não nasce no frio e nem na neve. E não passa frio. Passa calor. Nesta passagem-passageira, geralmente, há um queima de estoques de primavera e das outras estações. O Natal também entra neste queima de estoques. 

Com origem em uma época muito distante, o Natal sobrevive aos embates e aos desgastes naturais da passagem do tempo e ao gosto de tudo na vida. Apesar de tudo, o Natal ainda tem o seu encanto, o seu valor e o seu significado; ainda atrai olhares, nos fazer mexer nos bolsos, faz pulsar corações e provocar sentimentos diversos, inclusive de amor, de alegria e de paz. 

Este tipo de Natal empacotado e comercializado me incomoda muito, como certamente deve incomodar a muitos. Há, pelo menos, dezesseis símbolos, mais usados para esta festa eminentemente cristã: “estrela, sinos, vela, presépio, anjo, bola, árvore, Papai Noel, coroa do advento, guirlanda, cartão de natal, peru, ceia, presentes, amigo secreto e panetone”. Nada de Jesus! 

Além do Natal empacotado, comercializado e simbolizado, há o Natal de um significado eminentemente cristão. Nenhuma outra religião tem um Deus que se encarna, se torna humano e se humaniza. Geralmente, nas outras religiões são os humanos que se divinizam. Por isto, o Natal é a novidade do cristianismo. Nem mesmo o judaísmo já experimentou a fé num Deus feito homem. Eles ainda esperam. Ainda não viveram. Esperar não é mesmo que viver. Uma coisa é esperar, outra é viver o esperado. No universo e nos cenários das religiões, por enquanto, somente nós, cristãos, temos esta graça. Somente sabe o que isto significa quem acredita em um Deus Menino, deitado numa manjedoura e coberto por fenos. Por ser tão original, só celebra bem o Natal quem se parecer com Maria e José, com os anjos e os pastores, quem for solidário e acolhedor, como a Gruta de Belém, e quem tiver o coração em formato de presépio.  

Portanto, para além do Natal embrulhado, enlatado e comercializado, há também um “Natal Incômodo”, como o de Don Tonino Bello, que está em processo de beatificação: 

“Caríssimos, eu desobedeceria ao meu dever de bispo se lhes dissesse “Feliz Natal” sem incomodá-los. E eu quero incomodar. Eu não posso suportar a ideia de fazer saudações inócuas, formais, impostas pela rotina do calendário. Então, meus queridos irmãos, a vocês as minhas melhores saudações incômodas! 

Que Jesus, nascido por amor, lhes dê náuseas pela vida egoísta, absurda, sem impulso vertical, e lhes conceda a graça de recriar a sua vida na doação de si mesmos, na oração, no silêncio, na coragem. Que o Menino Jesus que dorme em cima da palha lhes tire o sono e faça vocês sentirem o travesseiro da sua cama tão duro quanto uma pedra, até acolherem de verdade um desalojado, um necessitado, um pobre que vaga pelas suas ruas por falta de compaixão. 

Que o Deus feito carne faça vocês se sentirem vermes toda vez que a sua carreira se tornar o ídolo da sua vida; toda vez que passar os outros para trás for o projeto dos seus dias; toda vez que as costas do próximo se tornarem o instrumento da sua escalada. 

Que Maria, a mãe que só encontrou no esterco dos animais o berço em que deitar com ternura o fruto do seu ventre, force vocês, com os seus olhos feridos, a suspender suas festinhas de fim de ano. Isso até que a sua consciência hipócrita enxergue que as latas de lixo e os incineradores das clínicas são transformados impunemente em túmulos sem cruz de vidas humanas exterminadas. 

Que José, aquele que encarou mil portas fechadas na cara e que é símbolo de todas as desilusões paternas, incomode o desperdício e exagero da sua comilança e dê curto-circuito no seu desperdício de luzes piscantes até vocês entrarem em crise sincera diante do sofrimento de tantos pais que derramam lágrimas pelos filhos sem saúde, sem trabalho e sem oportunidades. 

Que os anjos, anunciadores da paz, tragam a guerra à sua tranquilidade sonolenta, incapaz de enxergar que, sob o seu silêncio cúmplice, perpetram-se injustiças, expulsam-se pessoas, fabricam-se armas, militariza-se a terra dos humildes, condenam-se povos ao extermínio da fome. 

Que os pobres que acorrem à gruta de Belém, enquanto os poderosos conspiram na escuridão e a cidade dorme na indiferença, façam vocês entenderem que, se quiserem ver “uma grande luz”, precisam se levantar e partir; façam vocês entenderem que as esmolas de quem lucra com o couro das pessoas são calmantes inúteis; façam vocês entenderem que as belas roupas compradas com o décimo terceiro salário podem até causar boa impressão, mas não aquecem a alma; façam vocês entenderem que a coexistência de pessoas sem lar e de especulação corporativa é um ato de horrendo sacrilégio. 

Que os pastores que velavam no meio da noite vigiando o rebanho e perscrutando a alvorada deem a vocês um sentido para a história, a emoção da expectativa, a alegria do abandono em Deus e lhes inspirem o desejo profundo de viver pobres em espírito, porque viver pobre em espírito é a única maneira de morrer rico aos olhos de Deus. 

Que, em nosso velho mundo moribundo, nasça a esperança. Feliz Natal! Don Tonino Bello”. 

Por tudo isto, eu reafirmo: “eu também estou doente!” 

Fonte: CNBB

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