Por Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto de Gn 3,9-20 faz parte do mais antigo relato bíblico da criação, Gn 2,4b—3,24, no qual se diz que não havia nenhum arbusto sobre a terra, nem ser humano para cultivá-la. Deus, então, modela da terra um homem e lhe dá o sopro de vida. Planta um jardim, no Éden. Da costela do homem, faz-lhe uma companheira. Eles viviam nus, com a proibição de não comerem do fruto da árvore do bem e do mal, até que um dia, a serpente engana a mulher, que engana o homem, e ambos comem do fruto proibido. O medo se apodera deles. Todos os três recebem um castigo do Criador e são expulsos do paraíso. Gn 3, 9-20 trata do encontro do casal, no jardim do Éden, com Deus, o que resultou num diálogo de cobrança e de punição imposta à mulher, ao homem e à serpente. Por que essas punições? Deus é mãe! A mulher é mãe!
No jardim do Éden, isto é, na infância de nossa vida, haviam duas árvores, a da vida e a do conhecimento. A primeira oferece o fruto da imortalidade, a segunda o conhecimento do bem e do mal. Sabedor de sua condição mortal, o ser humano almeja a imortalidade. Ninguém quer morrer. Exceção para aqueles que perdem o sentido da vida. Na mitologia, a fonte da vida está nos deuses, os quais não aceitam repassar esse segredo para o ser humano.
Em Gn 3,8-9, o fato de Deus passear pelo jardim demonstra que a vida humana está no paraíso, bem próxima Dele. Comer do fruto proibido seria o mesmo que morrer. Adão e Eva, induzidos pela serpente, comem a ‘maçã’ que não existiu,[2] mas não conhecem a morte. Trata-se não de uma morte física, mas da capacidade de libertar-se de Deus, tornando-se capaz de conhecer o bem e o mal, o que lhes trariam a morte. Ao ser humano, após comer mitologicamente esse fruto, é conferida a faculdade de decidir pelo bem e pelo mal. Ele terá que pagar com a própria morte a opção feita no paraíso, a de não aceitar a sua condição de criatura. A primeira consequência de tudo isso foi a perda do paraíso. E ficou a saudade do paraíso perdido.
A nudez percebida pelo ser humano ao encontrar-se com Deus não tem nada a ver com a vergonha da nudez. O texto nem fala disso. No mundo antigo, deuses eram representados nus. A nudez, na verdade, coloca o ser humano na condição de fertilidade, doadores da vida que somente vem de Deus. Adão e Eva se veem como um deus diante de outro deus mais poderoso, Deus-Javé, e têm medo dele. Nisso está o sentido da nudez. Gerar a vida é sinal de responsabilidade.
Adão, em hebraico, Adam (tirado da terra) e Eva, em hebraico, Hevae (a mãe dos viventes) representam o ser humano de forma geral. Nunca existiram como personagens. Já a serpente, um animal astuto, feito por Deus e falador, repete a fala de Deus, faz promessa, mas deixa a responsabilidade para a mulher. Assim somos nós, quando não assumimos nossos atos.
A serpente, no mundo antigo, estava relacionada com a vida e o poder. No Egito, o Faraó tinha uma serpente sobre a sua cabeça para representar o seu poder, a vida e sua imortalidade. O poder do Faraó passava pela serpente, a imortal. A serpente era símbolo de vida pelo fato dela viver sobre a terra, a grande Mãe e trocar de pele todos os anos. Na mitologia grega, a vara do deus da medicina, Esculápio, possui serpentes enroscadas. Em Israel, a partir de Gênesis, a serpente passou a significar a força do mal e expressão religiosa, uma concorrente de Javé, o Deus de Israel. Em Canaã e Israel era conhecido o culto de fertilidade ligado à serpente e ao touro. O símbolo da serpente estava no próprio templo de Jerusalém.
Pelo fato de a mulher ter aceitado o convite da serpente, ela passa a ter dores de parto. Ela se torna fecunda como a serpente, mas dará à luz com dores. Mulher e serpente são desqualificadas na narrativa mítica.[3] Por outro lado, a mulher também, por causa da ação da serpente, torna-se súdita do homem. “Ela terá desejo verso ele, que a dominará” (3,16) é a terrível sentença de punição para a mulher. O homem passa a governar a mulher. O poder de dominar da serpente passa para o homem. Pelo fato de o homem ter aceitado a proposta, ele recebeu a punição do trabalho exaustivo na terra, que se torna maldita por causa da desobediência (3,17). O poder da serpente leva o homem a viver de suor e fadigas. A serpente, o poder dominador, precisa desse trabalho forçado para sobreviver.[4] O homem se torna pó da terra e morre de tanto trabalhar. O mito explica o sofrimento pelo viés da opressão, que o lavrador conhecia.
Outro detalhe é a vida na relação entre a serpente, Deus e a mulher, o que pode ser percebido na raiz comum desses nomes. Serpente em aramaico, JIWYA, deriva da raiz JWY, viver ou fazer viver. O nome de Deus, YHWH, Deus da vida que se dá a conhecer. Da mesma raiz é Hevae (Eva), a mãe dos viventes. Portanto, quando o homem domina a mulher, ele domina, simbolicamente, a Deus. Triste relação que ainda precisa ser mudada para manter a vida em igualdade, apesar das serpentes e dos misóginos, os machistas. Deus é mãe! A mulher é mãe! Maria é mãe da Igreja!
Fonte: Franciscanos
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ
[2] Para saber o sentido da maçã e aprofundar a passagem em questão, confira o nosso livro FARIA, Jacir de Freitas. As mais belas e eternas histórias de nossas origens em Gn 1-11. Petrópolis: Vozes, 2015.
[3] REIMER, Haroldo, A serpente e o monoteísmo, In: Hermenêuticas Bíblicas, Contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica, São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, p. 119.
[4] SCHWANTES, Milton, Projetos de Esperança: meditações sobre Gênesis 1-11, Petrópolis: Vozes, 1989, p.80-81.